...''Las tumbas son para los muertos
Las flores para sentirse bien
La vida es para gozarla
La vida es para vivirla mejor
Calaveras e diablitos
Invaden mi corazón...''
Los Fabulosos Cadillacs - Calaveras e Diablitos
Turistas....
Quando tinha 16 anos, o meu filme preferido foi o Fight
Club. Um filme em que Edward Norton contracenava com Tyler Durden (Brad Pitt),
como duas personalidades da mesma pessoa que reagia de maneira agressivamente
esquizofrénica contra o estilo de vida imposto à classe média americana pela
sociedade de consumo. Foi o tema de um dos primeiros textos que escrevi nas
Pataniscas.
Nas primeira meia hora do filme, a personagem de Edward Norton infiltra-se em
grupos de apoio a doentes com doenças malignas, onde conhece Marla Singer (Helena
Bonham Carter).
Marla é outra infiltrada saudável, ou como ele lhe chama -
'A grande turista'.
That is unnerving.
Eles são turistas no meio de pessoas com doenças graves, para
usufruir do que consideram interacção humanas genuína. Provavelmente porque
quem está às portas da morte tem uma perspectiva elevada do que é
verdadeiramente importante na vida.
Há alguma coisa que soa de falso, de pejorativo no conceito
de turista. Alguém que não é de cá, que não conhece os costumes e a cultura, e
que ainda por cima está de férias. Talvez por isso a hospitalidade é um sólido
princípio católico_ ser amável para estranhos, que provavelmente nunca terão a
possibilidade de reciprocar a gentileza.
Reajo de modo ambivalente aos turistas. Gosto de ver a rua
cheia de gente meio perdida, com aspecto que está a participar num jogo de
pista que exige uso de óculos escuros, mas por outro lado irritam-me quando estão a entupir os restaurantes, ou a olhar de maneira interrogativa para a máquina que vende bilhetes no metro
Provavelmente
é inveja.
No caminho para o trabalho tenho que atravessar o Terreiro
do Paço e a Baixa, e é impossível não lhes invejar o passo lânguido, o olhar
panorâmico, a t-shirt casual. Estão por todo o lado. De mochila às costas, nas
ruelas da mouraria, sentados nas fontes
do Rossio, reclinados nas cadeias das esplanadas a empunhar copos de vinho caro
numa mão e pasteis de bacalhau recheados com queijo da serra na outra. Comem
descontraidamente, enquanto enchem de gordura as páginas da última edição do lonely
planet.
Nos últimos anos as caixas multibanco têm brotado na Baixa.
Peço desculpa, não são caixas multibanco, são ''ATM's''. Que é estrangeiro para
caixa multibanco que cobra comissões pouco simpáticas. E os turistas fazem fila
atrás delas para sacar euros às centenas, a gastar nas lojas de souvenirs e nos
pastéis de nata.
Toda a gente sabe que se os turistas gastarem dinheiro na
economia local, isso é bom para o consumo, o que leva a crescimento e cria
empregos. Mais procura ao longo do tempo leva à necessidade de criação de mais oferta. E a preços mais elevados. Mas será que isso é assim tão simples e sem efeitos adversos?
Já se os salários dos locais aumentarem, e forem eles a gastar
dinheiro na economia, isso já não é bom (por algum motivo...), e vem aí o papão
da Dívida, da Troika e o Diabo.
Não faço ideia o porquê destes dois pesos e duas medidas. Será
que as notas dos turistas estão a vir directamente do Banco Central Europeu, enquanto
as nossas vêm de um tabuleiro do monopólio edição Belzebu? Em vez de cartas da
sorte, temos cartas da danação eterna da gentrificação, e provavelmente a autarquia
demoníaca emite multas de estacionamento em barda e mete-as directamente na
caixa da comunidade. Porque como as coisas estão, prefiro uma tarde a tomar
banho no lago de fogo, a deixar o carro no parque dos Restauradores.
Será que é esse o significado dos estacionamentos na ''zona
vermelha'' da cidade? A confirmar-se, os parquímetros deviam ser pintados
de vermelho vivo e ter cornos compridos.
Acabo a tarde a dar a volta à Rua Augusta e a parar à beira
de duas estátuas vivas, pintadas de bronze. As estátuas estão vestidas de
fadista e de guitarrista, e suam debaixo do calor de julho por meia dúzia de
moedas que casais de meia idade lhes deixam cair no chapéu, depois de lhes
tirarem fotografias. A metáfora perfeita para o mercado de trabalho no período
pós Troika.
As estátuas vivas fazem vénias delicadas, depois de uma fazer
cócegas a um simulacro de guitarra portuguesa, a outra com um esgar de quem
está a sentir uma Casa Portuguesa a correr-lhe nas veias, se não a vibrar-lhe nos
lábios, com certeza. O fado mudo das estátuas vivas na Rua Augusta soa-me a
ecos do ano distante de 2011.
Consigo ouvir comentadores que segregam frases enlatadas do
enclave ideológico a que pertenciam quase todos. Entre segmentos noticiosos sobre
a dívida pública e mudanças ao código de trabalho, um desempregado, deitado no
sofá, absorve as palavras de idiotas engravatados no telejornal, que orientam a
vidinha tentando agradar ao poder dominante. Pelo menos na altura... hoje as
coisas estão menos certas para os Camilos Lourenços do mundo.
''Temos que empobrecer. Sair da zona de conforto. Criar o
próprio emprego. Aproveitar o que o nosso país tem de melhor. Temos que
promover a marca Portugal, fomentar o turismo. Está na hora de pôr em prática
soluções criativas.''
Hum... Passado poucos anos, somos todos estátuas vivas num mercado
de trabalho cada vez mais desregulado e global.
O governo do PSD/CDS foi para a gaveta, e deu lugar a outro
governo de compromisso. O que o centro e a esquerda têm em comum parece maior,
depois de estarmos todos sujeitos ao terrorismo psicológico do governo dos bons
alunos da Troika. Se provas faltassem que o alarmismo e o medo ainda dominam o
pensamento da direita, basta ouvir Passos Coelho na oposição em 2016, com
ameaças vagas de que vem aí o Diabo.
A confiar nas sondagens, parece que a
população atirou o Diabo pela escada abaixo, e ele ainda não deu todos os
trambolhões que pode dar em direção à cave da mudança de liderança.
Não veio o Diabo, mas nós estamos na encruzilhada a ver caminhos
bloqueados à nossa frente. Parou (ou pelo menos desacelerou) a degradação da
nossa vida operada por aqueles que acreditam que o Estado Português teve que resgatar uma série de bancos porque ''a culpa da crise é de
todos'', e os bancos faliram porque a população ''gastou acima das suas possibilidades''.
Continuamos, no entanto, como estátuas vivas que fazem
vénias delicadas e cantam fados mudos, tudo por meia dúzia de trocos que nascem
de uma fresta de concórdia entre o centro e a esquerda.
Estamos melhor do que há 2 anos os fanáticos satânicos nos
queriam fazer acreditar que estaríamos, por isso não me quero queixar
demasiado. Às vezes uma fresta, uns trocos, umas mexidas no salário mínimo, é o que chega para imaginar uma luz
ao fundo do túnel...
As luzes ao fundo do túnel têm o condão de poderem conter tudo o que se lhes quiser atribuir. Enquanto uns acreditam que a saída de uma situação de aperto está perto, outros têm uma perspectiva mais pessimista.
Depende de que narrativa se está mais habituado a acreditar.
Mas se a esquerda acha que a luz ao fundo do túnel é a salvação da pátria, enquanto a direita diz que o demónio vem com um segundo resgate para nos espetar mais dívida no lombo, tenho que confessar que não faço ideia do que significa a luz ao fundo do túnel.
Só sei continuo a ouvir falar estrangeiro na Terreiro do Paço.
Os russos e os ingleses param em frente às estátuas
vivas, e vêm em duas cores: anemia pálida e vermelho caranguejo.
Passeiam pelas ruas da baixa com malas Prada a
tiracolo, onde guardam a espada de dois gumes que é um poder de compra muito
superior ao nosso. Por um lado, aumenta o consumo e o emprego na economia local.
Por outro, a gentrificação que produz queima-nos os bolsos, como vingança irónica
pelo nosso sol que lhes queima as costas. E não há Ambre Solaire factor 50 que nos valha contra o aumento dos preços das rendas dos imóveis e de alguns produtos de primeira necessidade.
Os turistas deambulam nos Restauradores e cruzam-se com velhotas de passo incerto, a caminho do sítio para onde todas as velhotas estão a ir.
Para outro sítio.
Porque os senhorios demoraram 27 segundos a perceber que podiam arrendar um apartamento por meia dúzia de tostões por mês a um casal de reformados com uma pensão média, ou meter um anúncio no AirBnB e arrendar à segunda a suecos, à quinta a australianas e ao domingo a chineses.
Os senhorios com mais visão reaproveitam os bibelots e as loiças das senhoras idosas, e dão retoques na decoração retro/vintage nos
quartos a alugar aos turistas do Air BnB.
É assim que um dálmata de loiça se encontra finalmente com um sofá Ektorp do IKEA, ou que uma máquina da costura se transforma numa mesa de apoio, onde se descansa um televisor LED da Samsung de 30 polegadas.
Não interessa muito... Como as coisas estão, esse futuro é tão fácil de parar como a rotação da Terra à volta do Sol. Seremos nós que teremos que nos adaptar à nova realidade.
Martin Ron (arte de rua) - ''A morte do bairro''