Pataniscas Satânicas

Pataniscas Satânicas

domingo, 5 de junho de 2011

The softly spoken magic spell

Suponho que, no último dia da nossa vida, percebemos aquela conversa, popularizada em email em cadeia, sobre como devemos valorizar as pequenas coisas, não tomar a vida como garantida, e bem, viver cada dia como se fosse o último. Percebemos também a necessidade de alguém tentar transmitir a intensidade com que se vive os últimos instantes, os arrependimentos que nos pesam no espírito, e o esforço, sempre vão, de tentar pôr por palavras a necessidade de viver uma vida plena, de maneira a não ter lamentações no leito de morte. Claro que ninguém entende a verdadeira dimensão desse sentimento, mais que um doente terminal consegue convencer um fumador em cadeia a largar o tabaco.


Os lençois estavam amarfanhados pelas voltas que ele tinha dado durante aquelas primeiras horas da manhã. Tinha transitado directamente de um sonho, desfiado no escuro do quarto, para uma memória esbatida de uma citação de um filme descolada do seu subconsciente por motivos que não ascenderam com ela. ''Today is the first day of the rest of your life. That is true for every day, except the day you die...'' Sabia que ia estar nostalgico. Já tinha negociado consigo próprio esse estado de espírito, durante dias e dias de tortura existencial, entre a negação e o desespero. Era fim de semana e ele estava sozinho. Tinha-se finalmente habituado à ausência de vozes na casa ao sábado de manhã. Fazia parte do acordo.


Levantou-se, completamente desperto, e testou a solidez da sua força de vontade de suster a angústia que o aproximar da hora designada iria despejar sobre si. Entrou na casa de banho e começou a tossir. Cuspiu o sangue durante um bocado. A quantidade era substancialmente menor que o normal, e o facto de estar ocupado a fazer alguma coisa, tirou-lhe alguma ansiedade dos ombros. Recompôs-se, e vestiu-se.


Percorreu as ruas da cidade, ainda desertas, sem destino. Perdeu-se num beco desconhecido, e quando voltou à rua principal viu duas senhoras idosas que se dirigiam para a igreja da freguesia. O sino metálico tocava lenta e melancolicamente à distância. Enquanto olhava para elas, alguma coisa lhe devolveu à consciência o seu propósito. Estava atrasado. As 9.07 o comboio partia, e ele ainda estava longe. Subiu a rua, e virou à esquerda, e viu a estação ao fim da rua. Tinha estado com medo de não conseguir, que no último momento lhe faltasse a coragem, mas sentia-se estranhamente bem, sereno. Fugia ao pesadelo. Sentiu os seus movimentos como automáticos enquanto passava a vedação. Não olhou para os lados. Só abriu os olhos quando um silvo cortou o ar.


No último momento, sabia que ia acontecer alguma coisa, mas em vez da vida lhe passar em frente dos olhos, teve uma sensação familiar que o assaltava no fim de dias pouco produtivos, durante o seu tempo com a empresa. Nos dias em que havia trânsito, a máquina das fotocópias estava avariada, a burocracia aumentava nas caixas de arquivo, apesar das suas horas perdidas a preencher papéis e a fazer telefonemas. Não fazia nada de jeito à tarde, tinha 7 coisas para despachar e obstáculos logísticos e circunstanciais metiam-se no caminho de fazer a primeira. Sentia-se frustrado e desiludido consigo próprio. Não tinha conseguido viver aquele dia. Acabava por procrastinar tudo para o dia seguinte, ou para quando tivesse tempo.


Sentia que a sua vida tinha sido curta, tão curta, que o tempo útil dos seus anos de ouro tinha sido desfeito sob o peso das pequenas coisas corriqueiras do dia-a-dia que têm que ser resolvidas. E pela sua própria negligência e preguiça. A sua vida não era diferente da de milhões de outros seres humanos, no que diz respeito a riqueza de experiências, e esse facto parecia-lhe o pior insulto do mundo.


Finalmente lembrou-se de ter visto uma pessoa ter um enfarte na rua, um dia. Tinha um olhar de surpresa na cara. Não de medo, não de pânico ou desespero, mas de surpresa. Como se tivesse se tivesse planos para amanhã, e aquilo os estragasse irreparavelmente. Ele não tinha morrido. Só lhe tinham tirado o tempo.


Saber tudo o que ainda tinha para fazer é que era a maldição intolerável. No último instante invejou as pessoas que ficam dementes. No final, a demência talvez fosse a maneira do cérebro se defender de saber todas as coisas que ainda havia para fazer, que iam ficar pendentes, após o fim do tempo.


‘'The time is gone,


The song is over


Thought I’d something more to say.’’

2 comentários:

  1. Cabrão... eu pensava que este blog era para escrever parvoíces, ideias parvas que fôssemos tendo. E tu tens de vir estragar tudo escrevendo um texto bom.
    Um texto excelente, diria eu. Curto, económico, elegante, intenso, com o vocabulário certo para transmitir uma mensagem emocional simples, directa e forte. Neste caso, e no teu estilo pouco habitual, de angústia existencial.
    Vês o que fizeste? You've taken it up a notch! Criaste um novo padrão pelo qual as pessoas podem julgar o blog! Agora ficam à espera de mais!
    Assim obrigas-me a ter trabalho e a escrever coisas que não sejam só verborreia! De vez em quando, pelo menos.
    As pessoas ainda estão à espera da História dos Macacos.

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  2. Hei, obrigado! suponho que é questão de estarmos para ai virados. O positivo da escrita criativa é escrevemos o que nos der na cabeça, sem restrições nem inibições.

    Não sei que pessoas são essas que estão à espera da história dos macacos, mas trata-se de informação sensível, que pode causar danos nas mãos erradas...

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