Pataniscas Satânicas

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terça-feira, 28 de junho de 2016

O Problema dos Cães

Lobos pré-históricos? Cães cabeçudos? Problemas éticos que ainda não surgiram?

Vamos falar sobre isso.


Imaginem.

Uma extensa planície de ervas rasteiras e arbustos, fria e seca, frequentemente coberta de neves, quase sem florestas ou árvores. Ao norte há desertos árcticos, e ao sul dominam as estepes ou a tundra.

Estas estepes são populadas por mamutes, rinocerontes peludos, auroques, leões das cavernas, ursos das cavernas, e os nossos primos afastados, os Neandertais.

Foi num ambiente assim que há cerca de 50 000 - 45 000 anos, durante a Idade do Gelo, os nossos antepassados entraram na Eurásia vindos das planícies africanas.



Os nossos antepassados viviam em pequenas tribos ou grupos familiares. Não cultivavam a terra (a agricultura não surgiria ainda durante pelo menos mais 30 000 anos), em vez disso caçavam os ditos mamutes e rinocerontes, recolhiam bagas e frutos que encontravam, e tentavam defender-se dos leões e dos ursos.

Nessas estepes corriam também Lobos do Taimyr (nome da península russa onde foram encontrados ossos de espécimes). Estes animais muito semelhantes aos lobos actuais, eram predadores, viviam em pequenos grupos familiares, e eram intensamente sociais.

Uma aliança ter-se-á formado entre tribos de Humanos e alcateias de Lobos do Taimyr, com os lobos a aproximarem-se dos grupos de humanos para se aproveitarem dos restos das caçadas dos humanos, e a alertarem os humanos da proximidade de outros predadores como leões ou ursos.

Não deve ter demorado muito tempo até que um humano pré-histórico tenha roubado algumas crias de Lobos do Taimyr, para as criar no seio da tribo humana.


A cada nova ninhada de Lobos do Taimyr que crescia numa tribo, os humanos seleccionavam as crias de lobo mais sociáveis, amigáveis, dóceis e fáceis de treinar, libertando ou matando as que fossem mais agressivas ou que resistissem ao treino.

Foi através desta selecção artificial feita por estes humanos pré-históricos, que os genes dos Lobos do Taimyr se modificaram ao longo das gerações.

Há cerca de 40 000 - 27 000 anos essas diferenças genéticas acumularam-se o suficiente para que surgisse uma nova espécie: o Cão.

Os Lobos do Taymir extinguir-se-iam naturalmente com o fim da Idade do Gelo, e representam o último antecessor comum entre os cães e os Lobos Cinzentos que ainda existem hoje.

Ou seja, os cães são uma invenção humana.

Não existiam cães até que os humanos começassem a mexer nos genes de lobos através de selecção artificial.

É por este motivo que podemos considerar os cães o primeiro organismo geneticamente modificado.


Claro que a selecção artificial que os humanos fizeram aos cães não parou por aí.

Ao longo dos milhares de anos que se seguiram, os humanos continuaram a seleccionar os cães, escolhendo sistematicamente aqueles que se relacionavam melhor connosco, que assimilavam treino com mais facilidade. Foram dando prioridade a determinados comportamentos conforme as necessidades específicas.

Precisamos de um cão de guarda? Pegamos numa linhagem de cães e seleccionamos para a territorialidade, o tamanho e a agressividade.
Precisamos de um cão pastor? Pegamos noutra linhagem de cães e seleccionamos para a velocidade e para a inteligência.
Queremos cães de companhia? Seleccionamos para tamanhos mais pequenos e para a docilidade.

Desta maneira conseguimos chegar a cerca de 400 raças distintas de cães.
carreguem na imagem para ver com mais pormenor
A nossa obsessão por cães, pela pureza das suas raças e pelos seus pedigrees levou a que registos fossem mantidos por vários clubes no mundo todo, detalhando não só as características específicas de cada raça mas também complexas árvores genealógicas de linhagens de cães de raças "puras", para evitar que houvessem cruzamentos não desejados.

Esta fixação nas características consideradas ideais para cada raça fez com que essas características fossem artificialmente seleccionadas em cada nova geração de cães, de maneira a exagerá-las.

A cabeça cónica dos Bull Terrier tornou-se mais cónica, as pernas curtas dos Dachsund tornaram-se mais curtinhas, as pregas na cara dos Bulldogs tornaram-se mais pregueadas.


Esta obsessão pela "pureza" e pela acentuação de determinadas características leva a que os criadores façam cruzamentos dentro das mesmas linhagens, de irmãos com irmãos, pais com filhas, mães com filhos.
Isto leva a que a variabilidade genética dentro da espécie diminua drasticamente a cada nova geração.

Um estudo do Imperal College de Londres de 2008 demonstrou que a variabilidade genética numa população de 20 000 Boxers era tão pobre que assemelhava-se mais a apenas 70 indivíduos.

Esta pobreza genética faz com que a prevalência de doenças genéticas aumente imenso. Cerca de 47% dos São Bernardo, por exemplo, sofrem de uma doença genética que provoca displasia da anca.

Mas a própria acentuação de características pode provocar problemas de saúde aos cães.

Os Pugs têm um focinho tão curto que têm imensa dificuldade em respirar e, consequentemente, em arrefecerem o seu corpo, e por isso estão constantemente em risco de hipertermia.
Os Cavalier King Charles Spaniel foram criados para terem crânios tão pequenos que o seu cérebro não cabe literalmente lá dentro, ficando comprimido e herniado, provocando dor e danos neurológicos.


O caso mais extremo é definitivamente o dos Bulldogs.

Os Bulldogs foram criados de maneira a terem cabeças tão desproporcionalmente grandes em relação aos seus corpos, que neste momento as mães Bulldog já não são capazes de dar à luz naturalmente.
Actualmente 86% dos nascimentos de Bulldogs são por cesareana.

Ou seja.

Criámos uma raça de cão que não se consegue reproduzir sozinha, e que está quase totalmente dependente de nós para sobreviver.


Ou seja.

Pegámos em animais selvagens, criámo-los propositadamente para se tornarem dóceis e obedientes para nos servirem melhor, alterámos-lhes as características físicas para corresponderem melhor às nossas preferências estéticas, criámos-lhes doenças que nunca teriam naturalmente, e tornámo-los completamente dependentes de nós.

"Mas os cães gostam de humanos! Eles gostam de estar connosco!"

É claro que sim.

Depois de 40 000 anos de selecção artificial a eliminar os que fossem resistentes ao treino e à obediência, eu ficava era espantado se eles fossem menos do absolutamente subservientes.


Há uma crescente consciencialização relativamente à protecção e aos direitos dos animais, que eu acho que é imprescindível para o avanço da nossa civilização. Estas discussões éticas sobre o que é aceitável ou não já começaram e focam-se sobretudo em animais de quinta, como vacas, porcos ou galinhas. Cada vez mais pessoas deixam de comer carne porque consideram que não é ético explorar animais para o nosso próprio proveito.

Tirámos animais inteligentes e muito conscientes do seu ambiente natural para o nosso próprio proveito. Alterámos-lhes os seus comportamentos naturais e os seus genes, e tornámo-los dependentes de nós.

Consideramos extremamente censurável a escravidão de outros seres vivos conscientes, e os cães representam seres vivos que não só foram escravizados mas também artificialmente seleccionados para gostarem dessa escravidão.

Não os podemos devolver à natureza porque isso implicaria o genocídio de muitas raças de cães, e revertê-los ao seu estado natural implicaria ainda mais manipulação dos seus genes.

Mais tarde ou mais cedo, enquanto sociedade, vamos ter de nos confrontar com o problema ético que os cães representam.

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