Um contrato social que permite ter um amigo em casa à nossa espera, se estivermos dispostos a apanhar fezes do passeio.
Nós gostamos de cães. Já falámos várias vezes sobre isso. Nós gostamos de coisas curiosas, e ter quadrúpedes a morar na nossa casa, a mijar no tapete, a roer as pernas da mesa e a ladrar às visitas só parece normal porque estamos habituados.
Fico com a impressão que descrevemos bem o processo que levou à domesticação dos cães. Ajudavam a defender os abrigos, a caçar outros bichos, e comiam os restos das nossas refeições.
Mas é só isso? Porque é que mantivemos os cães a morar connosco, se já não vamos à caça?
Para nos defender dos ladrões?
Caso um ladrão entrar na nossa casa, preferimos que ele roube a televisão e o computador, antes de magoar ou levar o nosso cão.
Então... porque é que nós temos fontes de baba em nossas casas?
Provavelmente porque temos uma relação com eles. Por isso é que falamos com eles, passando por idiotas quando somos observados por pessoas que não têm uma relação com o cão.
Há relações com cães que são celebradas.
Em 1925, um professor universitário chega à estação de Shibuya, em Tóquio. Como todos os dias durante os últimos meses, o seu cão Hachiko está à sua espera. Estava à espera do dono, para irem para casa.
Um dia, no início de Maio, o professor não apareceu. Teve um AVC e faleceu. Mas Hachiko foi esperar o dono na mesma. E continuou durante quase 10 anos, todos os dias, à hora do comboio, Hachiko esperava pelo dono na estação de Shibuya. As pessoas começaram a reparar nele e levavam-lhe comida. Os funcionários da estação começaram a tentar afugentá-lo mas ele voltava sempre.
Até ao dia em que morreu, Hachiko esperou pelo dono, há hora do comboio que o trouxe tantas vezes.
Antes de começarem com demasiada pena do cão, eles fizeram-lhe uma estátua. E um filme com o Richard Gere.
Uma estátua no bairro onde ele passou a sua vida. Uma estátua em espera perpétua por um humano que morreu há décadas.
90 anos depois, os japoneses construíram uma nova estátua a celebrar aquela relação.
Há outros exemplos, como o Greyfriars Bobby, um cão que esperou pelo dono durante 14 anos, em vigília na sua sepultura.
Ter uma estátua é para heróis nacionais, como o Marquês de Pombal e o Cristiano Ronaldo.
O motivo pelo qual Hachiko foi esperar o dono durante 10 anos, ninguém sabe dizer ao certo. Mas a cultura japonesa celebra a honra e a lealdade como as virtudes humanas mais salientes.
O comportamento de Hachiko, esperar quando devia desesperar, acreditar que o dono vai voltar muito para lá do que seria razoável, corresponde quase a uma corporização dos valores centrais
a aspirar na sociedade japonesa.
Daí a estátua, suponho.
Esta facilidade em atribuir humanidade aos cães deve estar relacionada com a nossa capacidade de interpretar emoções humanas no focinho e comportamentos dos cães.
Quem é que já não viu um cão a sorrir, a ''fazer olhinhos'', a sentir-se culpado por ter revolvido a terra de um vaso?
''He thinks he's people!''
''Who's a good boy? Who's a good boy?''
Nos adoramos cães, porque os humanizamos um pouco. Por isso o choque cultural tão grande com culturas que comem cães.
Vietnam tears itself apart in dog meat violence
Senti-me indignado, repugnado, e porra, mesmo deprimido com a notícia acima. Foi extremamente desconfortável de ler. O Vietname tem um problema de roubo (rapto?) de cães para usar na indústria alimentar. Estão a lembrar-se que aquela história que ouviram dos restaurantes chineses usarem cães em vez de aves na ''galinha'' com amêndoas?
Também interessante é que esta epidemia de roubo de cães para abate, levou a casos de ladrões de cães serem mortos à paulada, em aldeias em que as pessoas ficaram chocadas com os roubos. Há uma história de 3 adolescentes que, privados dos seus cães de estimação, perseguiram os ladrões que os tinham roubado. Acabaram por ter um acidente de viação e falecer, depois dos ladrões retaliarem com as armas de electrochoque que usam para raptar os cães.
É fácil pensar nos Vietnamitas como um povo malévolo e bárbaro, para praticarem um costume destes. No entanto, se alguém chamar à atenção para o facto que todos os dias milhões de galinhas são abatidas para nos alimentar, ninguém perde o sono. Porquê?
Bom, quite simple, as galinhas não se riem.
O impacto das nossas relações com os cães está disperso por inúmeras referências culturais. Está nas nossas memórias de infância, mesmo que nunca tenhamos tido cães como animais de estimação.
Para mim, e foi daqui que este texto surgiu, ficou a homenagem a Hachiko, feita pela série de Matt Groening, Futurama.
Sim, o episódio do cão de Fry.
Não foi a única vez que o futurama ''hit us right in the feels'', mas para mim foi o golpe mais profundo.
Torna assim tão mais poderosa a reunião de um cão com um amigo que não vê há anos. Se um ser consciente reage desta maneira quando os ve finalmente, as pessoas vão filmar e colocar no Youtube. E é assim que quero acabar. Com recepções calorosas, de amigos que quase tinham perdido a esperança de voltar a encontrar-se. O fim da espera de Hachiko.
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