Pataniscas Satânicas

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terça-feira, 5 de julho de 2016

Substitutos de Audiência - ou como construímos e destruímos os nossos heróis

A Kristen Stewart talvez não seja assim tão má actriz? o Spider-Man é o sonho molhado de um adolescente? Quem é que faz e desfaz os heróis da Marvel?

Vamos falar sobre isso
Já falei acerca da importância de ter personagens relacionáveis e do uso de tropes para atingir esse efeito, e hoje quero falar-vos de outro dos meus tropes preferidos e que é a convergência perfeita entre essas duas coisas:

O Substituto da Audiência.


Toda a gente criticou imenso a interpretação da Kristen Stewart nos filmes Twilight por ser inexpressiva, inespecífica, monocórdica, e aborrecida. O que faltava perceber era que a sua personagem tinha sido escrita dessa maneira propositadamente para ela ser a Substituta da Audiência.

Um Substituto da Audiência é uma personagem com quem a audiência não só simpatiza, mas com quem se identifica activamente.
Por intermédio do Substituto da Audiência os espectadores podem mais facilmente sentir-se imersos no mundo ficcional e, identificando-se com ele, sentir que vivem mais proximamente as suas aventuras.

A Bella Swan, não é mais do que uma personagem vazia, cujas acções são difíceis de interpretar, e cuja história é contada na primeira pessoa, em quem as adolescentes da audiência podem projectar a sua própria personalidade. A autora chegou mesmo a admitir que nos livros evitou descrevê-la fisicamente para facilitar que as leitoras se imaginassem na sua posição.


O Gordon Freeman não diz literalmente nada durante todo o jogo do Half-Life, nunca lhe vemos a cara dentro do jogo, e quando finalmente em materiais promocionais lhe vemos a cara, tem o aspecto de um nerd genérico.

Para que o Substituto da Audiência funcione é absolutamente necessário que identificação que a audiência tem com ele seja muito forte.
Muito mais do que o Herói que tem alguma forma de conflito interno com o qual a audiência se identifica para se preocupar com ele, mas que de resto tem uma quantidade enorme de capacidades que a audiência não possui, o Substituto da Audiência deve ser o mais semelhante possível ao seu público alvo para maximizar essa auto-identificação.

Gordon Freeman é um nerd genérico mudo, em quem qualquer nerd de ficção científica pode projectar a sua personalidade, e que vai ter aventuras num mundo de ficção científica onde luta contra alienígenas com armas de raios. Ele é o intermédio perfeito para que o jogador se sinta imerso nas aventuras.



O Dr. Watson, side-kick do Sherlock Holmes, também é outro exemplo clássico de um Substituto da Audiência.

Ninguém se identifica realmente com o excêntrico, heroinómano, génio, bizarro Sherlock Holmes, mas é muito mais fácil revermo-nos no terra-a-terra, razoável, quase mundano, Dr. Watson.

É o Dr. Watson que faz as perguntas que nós quereríamos fazer, e é ao Dr. Watson que o Sherlock Holmes dá as explicações que nós precisamos de ouvir.


O Bilbo Baggins é outro Substituto de Audiência. A personagem que é insegura, sem poderes ou características heróicas, que gosta é de sossego e calma, e reage com espanto e medo às coisas fantásticas que lhe acontecem quando sai da sua zona de conforto?

Não é por acaso que Martin Freeman interprete tanto o Dr. Watson como o Bilbo Baggins, bem como o Tim, que no The Office também era a personagem mais normal e razoável com quem era mais fácil identificarmo-nos.


Penny e Leonard, no The Big Bang Theory, servem como Substitutos da Audiência para o público não-geek e geek, respectivamente.
Para o público não-geek, quando um dos personagens faz uma referência obscura a alguma coisa na cultura Geek, a Penny está sempre lá para perguntar sarcasticamente do que é que ele está a falar, algo que o público está a pensar nesse exacto momento.
Para o público geek, o Leonard é um geek genérico sem os defeitos mais estereotípicos dos seus amigos (não é pervertido como o Howard, não tem medo de mulheres como o Raj, não é um idiota arrogante como o Sheldon).

É claro que depois de os autores estabelecerem firmemente com quem é que a audiência se deve identificar, torna-se fácil brincar com essa ideia para pôr na cabeça da audiência algumas ideias (conscientes ou não).


No Kick-Ass, depois de percebermos que é suposto identificarmo-nos com a personagem principal, que é um adolescente nerd que gosta de bandas-desenhadas e queria ser um super-herói (e quem de nós escapa realmente a essa descrição) o filme vai-nos mostrando realmente quão patética é a personagem.
Kick-Ass está sempre a levar tareões, é constantemente humilhado por todos, a rapariga de quem gosta só se interessa por ele quando ele finge ser homossexual, e quando descobre que não é manda o seu namorado dar-lhe mais uma tareia e depois manda-lhe vídeos dela mesma a fazer felácios ao namorado.
Começa por ser uma representação do adolescente normal, mas no fim já começa a ser só mauzinho, explorando a identificação inicial que a audiência teve com a personagem para a fazer sentir-se mal consigo mesma.


No extremo oposto está o Spider-Man.

Peter Parker foi criado propositadamente para que os adolescentes se pudessem identificar com ele. Era também um adolescente nerd, com dificuldade em falar com raparigas, que era alvo dos tipos populares que jogavam desportos.
No entanto, depois de estabelecer a identificação entre a audiência e a personagem, Stan Lee dá-lhe de facto super-poderes. Se for bem executado é uma forma brilhante de criar investimento por parte da audiência, porque viver a fantasia de ter super-poderes é tão mais forte quanto maior for a identificação com a personagem inicial.
Este terá sido um dos principais factores que tornaram o Spider-Man uma das personagens mais populares e transversalmente reconhecíveis da Marvel.

É nestas circunstâncias que temos uma variação do Substituto da Audiência, que se chama o Ascended Fanboy (fã ascendido? não sei, tentem vocês traduzir).


Harry Potter é um Ascended Fanboy; o Luke Skywalker também; ambos começam como personagens adolescentes, sem poder e vulneráveis, que admiram um mundo fantástico do qual querem fazer parte, e acabam a tornarem-se poderosas e salvadoras de todo esse mundo.

O sucesso e popularidade destas personagens é um testemunho ao poder do Substituto da Audiência e do Ascended Fanboy.

É um exercício extremamente interessante que podem fazer da próxima vez que estiverem a ver um filme, ou a ler um livro, tentar identificar qual é a personagem que os autores querem com que vocês se identifiquem, e depois prestar particular atenção ao que lhe acontece.

Quero agora dar-vos mais dois exemplos muito específicos que para mim demonstram a força subtil de um Substituto de Audiência bem executado.


Phil Coulson é uma personagem no Marvel Cinematic Universe que é um agente da SHIELD, e que funciona como intermediário entre os super-heróis e a organização do governo.
Não tem super-poderes, tem um nome mundano e veste roupas mundanas, as suas opiniões são geralmente razoáveis mas não diz sequer muita coisa, é um empregado do governo; ao mesmo tempo é um fã de super-heróis e colecciona cromos vintage do Captain America.

Faz-vos lembrar alguém?

Esta representação ambulante do fã de BD envelhecido (o público alvo dos filmes) tem a sorte de ser amigalhaço de todos os Super-Heróis, e de vez em quando dispara uma grande arma de raios, o que não está muito longe de o tornar num Ascended Fanboy.

SPOILER ALERT



No filme Avengers (2012) o Phil Coulson é morto ao confrontar-se com o Big Bad, e é a sua morte que, no fim, motiva os Super-heróis a unirem-se como uma equipa e a irem lutar a batalha final.

O Substituto da Audiência tem o privilégio de viver no mundo dos Super-Heróis que admira e de experienciar de perto as suas aventuras. No entanto essa proximidade acaba por levar à sua morte, que ele aceita porque teve oportunidade de lutar contra o Big Bad.
É por causa da morte do Substituto da Audiência que os Super-Heróis atingem o seu potencial máximo, e é para vingar a sua morte que vão finalmente derrotar o Big Bad.

É um reconhecimento tremendo ao fã, e algo que lhe inflaciona imenso o ego, esta ideia de que é tão importantes que os Heróis vão lutar em seu nome. Ao mesmo tempo enfatiza a sua mortalidade e chama a atenção de que quem sobrevive no fim são os Heróis, e não os fãs.

A morte de Coulson é um elemento narrativo extremamente poderoso e com uma mensagem muito mais complexa e subtil do que poderíamos pensar inicialmente.


Alguns anos e meia-dúzia de filmes depois, após muita destruição e mortes colaterais de civis inocentes, já ninguém pode ignorar que os Super-Heróis também fazem muitos estragos. Por esse motivo os governos do mundo querem regulá-los e controlar quando e onde vão ser heróicos.
Isto leva ao conflito interno presente no Captain America: Civil War (2016) onde somos apresentados pela primeira vez a Helmut Zemo.

Apesar de isso não nos ser explicado ao início do filme, a família de Helmut Zemo morreu acidentalmente numa das batalhas dos Heróis contra outro Big Bad.

Sabemos pouco ou nada da vida da sua personagem para além do facto de ter tido uma família, ser um humano normal, sem poderes; não tem um nome de código, não usa uma máscara, e durante o filme nunca parece ser abertamente malvado, sendo sempre simpático e cordial com toda a gente.

É motivado pela morte trágica e desnecessária da sua família a querer vingar-se dos Heróis e a querer impedir que o mesmo aconteça a outras pessoas. Não é ele que cria o conflito entre os Heróis, e para além de o aproveitar para executar o seu plano, acaba por ter pouco contacto com os Heróis.

Hmmmm... Uma personagem com poucas características distintivas, sem super-poderes, vulnerável, e com problemas e motivações com os quais nos podemos identificar...

Será que Helmut Zemo é o Substituto da Audiência no filme Captain America: Civil War (2016)?


Num filme com um número impressionante de personagens cheias de super-poderes, Zemo, apesar de ser o vilão, é aquele que mais se assemelha a nós, com quem é mais fácil identificarmo-nos.
A sua motivação também é extremamente relacionável, e na única cena em que o vemos fazer activamente mal a alguém, ele passa imenso tempo a explicar que só o faz por necessidade e preferia não o fazer.

Tudo nele está pensado para que seja fácil identificarmo-nos com ele. E no entanto é o Vilão.

E isso é desconfortável.

E mais do que ser o Vilão, é o único Vilão em todo o Marvel Cinematic Universe que conseguiu ganhar contra os Heróis.

Sem acesso a poderes ou recursos ilimitados, e apenas com a sua inteligência, determinação e argúcia, Zemo consegue prejudicar mais os Heróis do que qualquer cientista louco, alienígena conquistador, ou robot genocida antes dele, e sobrevive para contar a história.


Portanto por um lado temos um Substituto da Audiência que existe para transmitir a mensagem emocionalmente forte de que os Heróis se importam com ele, que lutariam por ele, mas que isso implica que ele morre.

Por outro lado temos um Substituto da Audiência que existe para transmitir a mensagem emocionalmente muito mais complicada e ambígua de que os Heróis podem irresponsavelmente destruir a sua vida, e que ele pode suplantar-se aos Heróis, destruindo-os, e ainda assim sobreviver.

Não estou a dizer que há aqui uma mensagem subjacente propositada ou algum tipo de subtexto que ultrapasse o foco dos filmes.

Estou a dizer que a Marvel consegue usar ferramentas narrativas muito subtis, executá-las com uma mestria impressionante, para provocar efeitos emocionais extremamente específicos no seu público.

E quando foi a última vez que viram cinema de blockbusters de super-heróis, ou qualquer tipo de cinema for that matter, que tivesse este tipo de qualidade narrativa?


Just sayin'...

1 comentário:

  1. a tua analise ao big bang theory, e os vários tipos de geeks, é demasiado profunda para quem so tem um conhecimento casual sobre o assunto! (cof, geek!)

    A coisa do ascended fanboy é muito interessante, nunca tinha pensado nisso!

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