Vamos falar sobre isso!
Sugiro que leiam a Parte I e a Parte II, porque ajudam imenso a perceber do que eu vou falar hoje, e recebem pontos extra se lerem a Parte III da Consciência Humana.
Vamos directamente à pergunta que nos interessa, e que provavelmente atraiu a maior parte de vocês em primeiro lugar:
Será que os animais pensam como nós?
Temos de definir o que é que significa "pensar como nós".
Como é que nós pensamos? Ou melhor, o que é que define o nosso pensamento que, pelo menos à primeira vista, nos diferencia dos animais?
As Partes I e II já fizeram um trabalho razoável a demonstrar que não só a maior parte dos animais possui uma Consciência Primária (aquela das sensações subjectivas) portanto sentem, e são capazes de resolver alguns problemas lógicos ou que envolvam memória.
Isso já é uma coisa grande e com imensas implicações na ética animal, mas não é isso que temos na cabeça quando perguntamos "Será que os animais pensam como nós?".
Quando fazemos essa pergunta, o que queremos saber na realidade é se os animais têm esta coisa difícil de definir, que nós temos, que é uma sensação de EU.
Porque em teoria é perfeitamente possível sentir coisas e resolver problemas e fazê-lo de forma inteiramente mecânica, sem pensamento ou reflexão.
É este acto de pensar sobre pensar, de nos sentirmos uma pessoa individual que reflecte sobre decisões, esta meta-cognição, que compõe o que apelidamos de Consciência Secundária.
É isto que queremos saber se os animais têm!
Voltando ao problema das outras mentes e dos zombies filosóficos, a verdade é que não existe nenhum teste definitivo que prove com certeza a existência de consciência sequer em outros seres humanos.
Mas existem testes que nos permitem inferir com alguma segurança se as luzes estão acesas dentro da cabeça de outra pessoa (animal).
Teste do Espelho
O Teste do Espelho, ou Teste de Auto-Reconhecimento ao Espelho, tem sido um dos principais indicadores de auto-consciência desde 1970, quando foi desenvolvido.
Parte do princípio de que um ser vivo ao ser confrontado com um reflexo de si mesmo vai ser capaz de se reconhecer a si mesmo nesse reflexo, o que implica que possui na sua mente um conceito de individualidade e de "eu".
Os bébés humanos a partir dos 6 meses começam a demonstrar interesse pelo seu próprio reflexo, mas suspeita-se que simplesmente o confundam com outra criança. Entre os 6 e os 12 meses, o bébé ainda não tem um controlo completo sobre os seus movimentos, e é natural que ao ver-se ao espelho, não reconheça os movimentos como sendo seus.
Aos 18 meses os bébés humanos já são capazes de procurar no seu próprio corpo coisas que identificaram no reflexo do espelho, o que significa que conseguem correlacionar a imagem no espelho com uma representação abstracta de si mesmos.
Da mesma forma, se pegarmos num Chimpanzé e enquanto está a dormir lhe pintarmos uma mancha vermelha na testa, quando ele acordar e vir ao espelho que tem uma mancha vermelha pintada na testa, vai levar o dedo à testa para perceber melhor o que é.
Isto é uma prova muito convincente de que, como nós, também os chimpanzés possuem uma representação abstracta de si mesmos, um sentido de "eu existo"
À semelhança dos Chimpanzés, também os Bonobos, os Orangutangos, os Elefantes Asiáticos, os Golfinhos, as Orcas e as Pegas, pássaros da família dos Corvos, demonstram auto-reconhecimento perante o Teste do Espelho.
Chamo à atenção para o facto de que também algumas espécies de formigas parecem exibir comportamentos de limpeza depois de se verem ao espelho com um ponto vermelho pintado na cabeça, mas não quando não há lá ponto nenhum.
Façam desta informação o que quiserem.
Uma Pega-Rabuda (raio de nome) tenta repetidamente
limpar a marca que lhe foi colocada no corpo
Como é natural há imensos animais que não passam o Teste do Espelho, e vou chamar à atenção para dois, para demonstrar as limitações do teste.
Os Gorilas não demonstram resultados consistentes no Teste do Espelho, o que nos poderia fazer pensar que seriam uma das principais excepções, entre os primatas, no que toca à auto-consciência. No entanto, entre os Gorilas, o contacto visual é um sinal de agressividade, e é interpretado como um ataque, o que pode explicar que os Gorilas se sintam relutantes em olhar para o espelho.
Os Cães também não aparentam serem capazes de se reconhecer ao espelho, o que parece ser contraditório com toda a evidência empírica que temos de que os cães são muito espertos e empáticos.
O que não podemos esquecer é que o olfacto e a audição são os principais sentidos dos cães, e a visão é só o terceiro sentido mais importante, o que pode justificar a ausência de auto-identidade visual. Já se começaram a desenvolver testes de auto-reconhecimento para cães que usem a sua própria urina.
Viajar no tempo mentalmente significa apenas a nossa capacidade de lembrar eventos do passado e imaginar eventos do futuro. Ou, por outras palavras, o nosso "Eu Narrativo". A capacidade de lembrar o passado e imaginar o futuro permite-nos construir uma história com princípio meio e fim da nossa vida que nos permite existir para lá do momento presente.
Nas crianças, só 6 meses após a aquisição do auto-reconhecimento ao espelho é que começa a surgir a capacidade de viajar no tempo mentalmente. Aos 23 meses os bébés começam a usar marcadores temporais para identificar o passado e a serem capazes de prever os resultados de actividades com base em experiência anterior.
Esta é uma capacidade extremamente específica da consciência humana, e é uma das bases para o desenvolvimento da linguagem, da utilização de ferramentas e do surgimento da cultura.
Há várias experiências que demonstram a capacidade de várias espécies de lembrar eventos do passado e antecipar eventos no futuro.
Por exemplo, experiências feitas com Bonobos e Orangutangos demonstraram que estes eram capazes de recordar qual a ferramenta necessária para obter uma recompensa, e escolhê-la correctamente de entre um conjunto de ferramentas, até 14 horas depois de terem testemunhado a ferramenta a ser usada apenas uma vez.
Outras experiências feitas com Gralhas (também da família dos corvos), demonstraram que se estas fossem impedidas de recuperar a comida que tinham guardado anteriormente, quando libertadas iam recuperar apenas a comida não-perecível (nozes e frutos secos) e negligenciavam a comida que entretanto se teria estragado (minhocas).
Teoria de Mente
A Teoria de Mente define-se como a habilidade de atribuir estados mentais - crenças, intenções, desejos, dissimulação, conhecimento, etc - a nós mesmos e aos outros e a capacidade de compreender que os outros têm crenças, desejos, intenções e perspectivas que são diferentes das nossas.
Basicamente é a capacidade de perceber que as outras pessoas têm uma mente tão complexa e rica como a nossa, e que pode ser diferente da nossa. Ao reconhecermos que as outras pessoas possuem uma mente diferente da nossa estamos ao mesmo tempo a reconhecer que possuímos uma mente única e individual.
O autismo e a esquizofrenia são doenças nas quais, tipicamente, há uma perda da Teoria de Mente.
As crianças habitualmente desenvolvem Teoria de Mente por volta dos 4 anos.
Apesar de isto ser uma coisa extremamente difícil de testar experimentalmente com animais, existem algumas experiências muito convincentes de que vários animais possuem pelo menos alguma forma de Teoria de Mente.
Experiências com chimpanzés demonstraram que são capazes de compreender a intenção das acções de outros chimpanzés, dando-lhes as ferramentas necessárias para as tarefas que estavam a tentar completar.
Experiências com golfinhos demonstraram que eles não só têm a capacidade de olhar para onde os humanos apontam (se olham é porque de alguma forma compreendem que o humano sabe alguma coisa que eles não sabem) e são igualmente capazes de apontar (o que implica que sabem que os outros não sabem o que eles sabem).
Experiências com Corvos demonstaram que eles escondem a sua comida no solo mais depressa se suspeitarem que há alguém a observá-los, mesmo que não haja ninguém a observá-los.
Experiências com Pegas demonstraram que estas só escondem melhor a sua comida se antes disso tiverem roubado comida a outras Pegas, o que indica que poderão estar a atribuir a sua própria experiência aos outros indivíduos.
Finalmente, tanto gatos como cães conseguem, mais ou menos consistentemente, entender o apontar humano, que, como já expliquei, significa que entendem que o humano sabe alguma coisa que eles não sabem, e indica que poderão possuir alguma forma primitiva de Teoria de Mente.
Whew!
Pronto, chegámos ao fim.
Como é natural, ficou imensa coisa por dizer acerca disto. A exploração da consciência nos animais é muito, mas muito mais complexa do que eu imaginava inicialmente, e haveria imenso mais a dizer acerca de qualquer um dos tópicos de que falei.
Como poderão ter notado, eu nem entrei nos temas da Linguagem ou da Dor nos animais, porque qualquer um desses temas seria um artigo para si mesmo.
As ideias com que eu fiquei depois disto tudo são estas:
- A consciência não é um fenómeno binário, de sim-ou-não, ter-ou-não-ter. A consciência existe em vários graus, com mais ou menos auto-consciência, com mais ou menos complexidade, desde uma coisa extremamente primitiva que simplesmente ajuda o animal a saber onde está, até estas coisas complicadas que nós fazemos com a nossa cabeça.
- Não existe uma consciência, existem muitas. A consciência é composta por inúmeras peças e ferramentas razoavelmente autónomas, que podem ou não estar presentes, sem que se torne menos consciência por isso. Lá por os humanos não terem na sua consciência ferramentas para interpretar a eco-localização dos golfinhos, não são menos conscientes por isso.
- Usamos a nossa própria consciência como padrão para avaliar todas as outras consciências. É natural, porque a nossa é a única que ainda compreendemos minimamente, mas também é injusto para todas as outras consciências que não são iguais às nossas. Todos os testes que fazemos para avaliar a consciência nos animais baseiam-se em habilidades ou características humanas, portanto não é surpreendente que estejamos convencidos que os chimpanzés e bonobos (os seres vivos mais biologicamente semelhantes a nós) tenham um nível de consciência parecido ao nosso.
- A questão não é se os animais pensam como nós. A questão é se nós pensamos como os animais. E essa resposta é um estrondoso sim. Quando eu faço festas ao meu gato Bob, e ele parece estar feliz da vida, confortável e quentinho, posso ter quase a certeza absoluta que ele está a sentir o mesmo tipo de sensações e prazer que eu sentiria nessa situação.
- A consciência dos polvos é muito, muito estranha.
Espero que tenham gostado.
Como sempre se tiverem ficado com algumas dúvidas, deixem nos comentários e se eu souber, respondo.
Estes artigos foram baseados maioritariamente nas três seguintes fontes de informação:
Animal Consciousness - Enciclopédia de Filosofia da Universidade de Stanford
Evolutionary aspects of self- and world consciousness in vertebrates - artigo de revisão da revista Frontiers in Human Neuroscience
"A questão não é se os animais pensam como nós. A questão é se nós pensamos como os animais. E essa resposta é um estrondoso sim." E, no entanto, eu estava a ter um dia bom até agora...
ResponderEliminarAgora a sério, concordo com o artigo. A parte dos polvos, não sei. Não tenho dados suficientes.
O que é fascinante nisto é que o nosso viés cognitivo acerca destas coisas é que os seres humanos são os detentores da Consciência, e que os animais só podem aproximar-se dela.
EliminarO que nos esquecemos foi que não foram os humanos a inventar a consciência. Ela já existia, sob uma forma ou outra, há centenas de milhões de anos em centenas de espécies.
A nossa Consciência está só um degrau ou dois acima das outras (medido numa escada na qual pomos à partida os humanos no topo).
Ou por outras palavras, a Consciência Humana está construída sobre uma arquitectura cognitiva que é transversal à maior parte dos vertebrados. Nós só temos algumas ferramentas ligeiramente diferentes combinadas de uma forma muito específica que nos permite pensar da maneira como pensamos.
E sim, os polvos são mesmo bizarros. Tanto quanto consegui perceber do que li, eles têm uma consciência em cada braço.
Hei-de escrever sobre o assunto!
Concordo com isso tudo e (mais uma vez) é um tema no qual penso há muitos anos. ...
ResponderEliminarExcepto a parte dos polvos. Essa não. Parece-me um bocado múltipla persona demais para mim. ;)
Ainda vou escrever mais sobre a inteligência nos cefalópodes, só preciso de escrever umas parvoíces entretanto para desanuviar.
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