Desde que mudei de local de trabalho que tenho estado responsável por fazer os exames médicos que permitem aos cidadãos comuns terem direito a renovar a carta de condução. Parece uma responsabilidade de somenos importância. E é. Mas tem nuances divertidas.
No primeiro dia, quando me explicaram sumariamente o que tinha que fazer, disseram-me repetidamente que: ''nós não estamos aqui para prejudicar as pessoa'', e ''muitas destas provas são uma formalidade'', ''nos não estamos aqui para dar lições de moral a ninguém'' e talvez mais demonstrativo: '' a única tensão que interessa é a mínima, tem que estar abaixo de 95. A máxima pode estar a 250, que passas a pessoa na mesma.'' right...
Eu não me tomo como um gajo muito rigoroso, e acho que não tenho uma atitude demasiado paternalista... Mas se me atribuirem uma tarefa, tento desempenhá-la. Até porque não há mais nada para fazer.
Até ao dia em que o senhor, vamos chamar-lhe Joaquim, de 81 anos veio renovar a carta de condução. Disse-me a funcionária: ''está lá dentro o senhor Joaquim, que é um velhote muito querido.'' Vou tentar não me perder com as objecções que se podem levantar ao conceito. Vou só dizer: os velhotes não são queridos. Um golfinho, um arco íris duplo, a hello kity - são coisas comunemente catalogadas como queridas. Um senhor que treme constantemente enquanto olha o infinito, e conta histórias circulares interrompida de vez em quando, para mastigar em seco, não é querido. É, vamos lá, um venerável no ocaso da sua vida. Todo o respeito e consideração aos idosos. Eu também quero lá chegar. Mas, se lá chegar não quero que me chamem 'querido', como se eu fosse um porquinho da índia.
Entrei na sala e saudei o senhor Joaquim. Era um velhote simpático, meio despistado e bem disposto, que, da última vez que cá tinha estado, se tinha esquecido dos óculos. Não tinha passado no exame porque tinha um acuidade visual binocular de 3/10, sem óculos. Desta vez tinha trazido dois pares de óculos e estava pronto a começar. Apontei a fila de letras que já sei de cor, correspondente a 5/10, o mínimo para poder passar-lhe o atestado. Não acertou uma. Até disse números.
Fiquei desconfortável, pedi-lhe para mudar de óculos, apontei de novo. Não senhor Joaquim, aquilo é um Z, não um M. Não, o F foi a letra anterior. Este é um H. Confrontado, reclamou que via melhor sem óculos, que só atrapalhavam. À terceira tentativa acertou metade das letras.
Dolorosamente comecei a fazer o meu papel, de dizer ao senhor Joaquim que não iria poder voltar a conduzir, e ele começou a fazer o papel dele: ''Estou perfeitamente bem, então o dr acha que eu vinha renovar a carta, se não visse nada?''. Continuei a explicar. Passámos por onde passamos sempre: '' Você sabe quantos anos tenho eu de carta? 50 anos. O Dr tem que idade? Não preciso de um bocado de papel para conduzir...'', e depois: ''Era só para ir dar uma volta ao Algarve com a mulher agora no Verão... depois já nem preciso, depois nem estou a pensar em conduzir!'' e finalmente: ''Olhe, você sabe o que eu vou fazer se não puder conduzir? rasgo a carta, queimo-a, e fico em casa.''
Contei mentalmente: negação, raiva, negociação, depressão... e nem tinham passado 15 minutos! O senhor Joaquim estava com presa. Disse-lhe que se a polícia o apanhasse sem carta era chato, ao que ele respondeu que se visse a polícia fazia-lhes um manguito, e mandava-os para a cona da mãe deles. Disse isto sempre a sorrir. Foi aqui que percebi que ter ou não carta, era o menor dos problemas do sr Joaquim.
Liguei ao chefe que me respondeu que não, se ele não tinha no mínímo 5/10, não podia passar. Disse-lhe que concordava, o sr Joaquim é que estava a ser teimoso, e... ''Espera, o sr Joaquim?'', ouvi do outro lado. ''é um velhote simpático com um braço prostético?'' sim...
''Esse senhor é um velhote muito querido, que tem muito cuidado na estrada, esqueceu-se dos óculos a última vez...'' Retorqui que mesmo com óculos ele era capaz de confundir a vizinha do rés do chão com um marco do correio. ''Pois, mas eu conheço-o ele orienta-se bem, e nós não estamos aqui para cortar as pernas a ninguém, e além disso...''. O que aconteceu a seguir é fácil de inferir.
Não percebo o conceito do velhote querido. Mas acho que é como uma criança mimada, a quem se desculpa muita coisa, porque apesar de não jogar com o baralho todo, consegue ser simpático, bem disposto, e ter aquele ar despreocupado, que nos faz a todos pensar ''quem me dera ser assim quando chegar à velhice, tão cheio de vida''.
A quem pensa assim, eu respondo: Não é vida. É demência.
E claro que preferimos todos imaginar o senhor Joaquim a ir para o Algarve com a esposa, pelo caminho encontrar a psp, e num acto perfeitamente aleatório, mandá-los todos para locais já referidos. Consigo imaginá-lo em situações absurdas e perigosas, que se resolvem para melhor através de uma combinação bem ponderada de ingenuidade, despreocupação, e muia sorte.
Porque a alternativa é imaginá-lo a entrar em contramão numa autoestrada e levar tudo à frente, sempre muito sorridente e bem disposto.
Read More »
No primeiro dia, quando me explicaram sumariamente o que tinha que fazer, disseram-me repetidamente que: ''nós não estamos aqui para prejudicar as pessoa'', e ''muitas destas provas são uma formalidade'', ''nos não estamos aqui para dar lições de moral a ninguém'' e talvez mais demonstrativo: '' a única tensão que interessa é a mínima, tem que estar abaixo de 95. A máxima pode estar a 250, que passas a pessoa na mesma.'' right...
Eu não me tomo como um gajo muito rigoroso, e acho que não tenho uma atitude demasiado paternalista... Mas se me atribuirem uma tarefa, tento desempenhá-la. Até porque não há mais nada para fazer.
Até ao dia em que o senhor, vamos chamar-lhe Joaquim, de 81 anos veio renovar a carta de condução. Disse-me a funcionária: ''está lá dentro o senhor Joaquim, que é um velhote muito querido.'' Vou tentar não me perder com as objecções que se podem levantar ao conceito. Vou só dizer: os velhotes não são queridos. Um golfinho, um arco íris duplo, a hello kity - são coisas comunemente catalogadas como queridas. Um senhor que treme constantemente enquanto olha o infinito, e conta histórias circulares interrompida de vez em quando, para mastigar em seco, não é querido. É, vamos lá, um venerável no ocaso da sua vida. Todo o respeito e consideração aos idosos. Eu também quero lá chegar. Mas, se lá chegar não quero que me chamem 'querido', como se eu fosse um porquinho da índia.
Entrei na sala e saudei o senhor Joaquim. Era um velhote simpático, meio despistado e bem disposto, que, da última vez que cá tinha estado, se tinha esquecido dos óculos. Não tinha passado no exame porque tinha um acuidade visual binocular de 3/10, sem óculos. Desta vez tinha trazido dois pares de óculos e estava pronto a começar. Apontei a fila de letras que já sei de cor, correspondente a 5/10, o mínimo para poder passar-lhe o atestado. Não acertou uma. Até disse números.
Fiquei desconfortável, pedi-lhe para mudar de óculos, apontei de novo. Não senhor Joaquim, aquilo é um Z, não um M. Não, o F foi a letra anterior. Este é um H. Confrontado, reclamou que via melhor sem óculos, que só atrapalhavam. À terceira tentativa acertou metade das letras.
Dolorosamente comecei a fazer o meu papel, de dizer ao senhor Joaquim que não iria poder voltar a conduzir, e ele começou a fazer o papel dele: ''Estou perfeitamente bem, então o dr acha que eu vinha renovar a carta, se não visse nada?''. Continuei a explicar. Passámos por onde passamos sempre: '' Você sabe quantos anos tenho eu de carta? 50 anos. O Dr tem que idade? Não preciso de um bocado de papel para conduzir...'', e depois: ''Era só para ir dar uma volta ao Algarve com a mulher agora no Verão... depois já nem preciso, depois nem estou a pensar em conduzir!'' e finalmente: ''Olhe, você sabe o que eu vou fazer se não puder conduzir? rasgo a carta, queimo-a, e fico em casa.''
Contei mentalmente: negação, raiva, negociação, depressão... e nem tinham passado 15 minutos! O senhor Joaquim estava com presa. Disse-lhe que se a polícia o apanhasse sem carta era chato, ao que ele respondeu que se visse a polícia fazia-lhes um manguito, e mandava-os para a cona da mãe deles. Disse isto sempre a sorrir. Foi aqui que percebi que ter ou não carta, era o menor dos problemas do sr Joaquim.
Liguei ao chefe que me respondeu que não, se ele não tinha no mínímo 5/10, não podia passar. Disse-lhe que concordava, o sr Joaquim é que estava a ser teimoso, e... ''Espera, o sr Joaquim?'', ouvi do outro lado. ''é um velhote simpático com um braço prostético?'' sim...
''Esse senhor é um velhote muito querido, que tem muito cuidado na estrada, esqueceu-se dos óculos a última vez...'' Retorqui que mesmo com óculos ele era capaz de confundir a vizinha do rés do chão com um marco do correio. ''Pois, mas eu conheço-o ele orienta-se bem, e nós não estamos aqui para cortar as pernas a ninguém, e além disso...''. O que aconteceu a seguir é fácil de inferir.
Não percebo o conceito do velhote querido. Mas acho que é como uma criança mimada, a quem se desculpa muita coisa, porque apesar de não jogar com o baralho todo, consegue ser simpático, bem disposto, e ter aquele ar despreocupado, que nos faz a todos pensar ''quem me dera ser assim quando chegar à velhice, tão cheio de vida''.
A quem pensa assim, eu respondo: Não é vida. É demência.
E claro que preferimos todos imaginar o senhor Joaquim a ir para o Algarve com a esposa, pelo caminho encontrar a psp, e num acto perfeitamente aleatório, mandá-los todos para locais já referidos. Consigo imaginá-lo em situações absurdas e perigosas, que se resolvem para melhor através de uma combinação bem ponderada de ingenuidade, despreocupação, e muia sorte.
Porque a alternativa é imaginá-lo a entrar em contramão numa autoestrada e levar tudo à frente, sempre muito sorridente e bem disposto.