Pataniscas Satânicas

Pataniscas Satânicas

domingo, 26 de novembro de 2017

Smothering the bunny

A miúda do pijama cor de rosa insiste com a tia em como quer comer o chocapic na sala, enquanto vê os desenhos animados do titio avô.

A tia cede. A paciência não abunda àquela hora da manhã.

Depois da tigela vazia, ela bebe o leite castanho e lambe os cantos da boca, e fica a espreitar o gato que dorme derretido no canto junto à almofada grande, na chaise long castanha. Agachada ao lado da mesa, conta os subires e desceres do peito do bicho, barriga para cima, cabeça virada ao contrário, pousada sobre o sofá. Tenta suprimir um riso nervoso cada vez que os bigodes do gato tremem.

Dura pouco a contenção dela, e acaba com uma mão silenciosa pela cesta dos bordados da tia, uma mão que volta com um novelo cinzento claro entre os dedos. Ela atira novelo à barriga do gato, que acorda imediatamente. Ela corre atrás dele, unhas que arranham o soalho encerado, seguidas de passadas desengonçadas pontuadas por risadas excitadas. O gato entra no quarto e desaparece debaixo da cama.

Há uma pequena montanha de brinquedos ao lado da cama. No meio do caos multicolor das peças de lego, duas pernas esguias feitas de plástico emergem, ao lado de um lápis de cera vermelho. Ela pega na boneca e aproxima-a  à extremidade da colcha que vai até ao chão. Rápida como um relâmpago, uma pata aparece debaixo da cama e agarra o cabelo da boneca. Cada patada é seguida de risos eufóricos. No quarto ao lado, alguém se vira impaciente na cama. ''Joana, faz menos barulho! O tio precisa de dormir, chegou ontem tarde...''

Ela pousa a boneca, e espreita os olhos fluorescentes do gato por debaixo da cama. Depois pega no lápis de cera e começa a desenhar numa folha, uma casa, uma árvore, umas orelhas de coelho gigante. O coelho mora na casa, gosta dos desenhos animados do titio avô. As orelhas de coelho fazem com que se lembre do coelho da Alice, num daqueles desenhos animados antigos que a mãe insistiu que ela visse. Um filme dobrado em brasileiro, em que as pessoas cresciam e encolhiam se comessem cogumelos, ou bebessem coisas dos frascos cheios de líquidos coloridos. Ela desenha cogumelos no meio das flores, e o coelho rapidamente lhes está a dar uma trinca enorme. Depois o coelho fica logo gigante, gigante... Não cabe na folha de papel. Ela levanta-se e começa a desenhar umas orelhas gigantes na parede do quarto, com o lápis de cera vermelho. Acrescenta-lhe uns bigodes soltos, e depois um sorriso flutuante como o outro gato do filme. Um gato-coelho gigante que come cogumelos começa a ganhar forma na parede do quarto.

A tia entra no quarto, e a cena faz o sangue fugir-lhe da cara. ''Joana, que é que estás a fazer?! Não acredito, tu não fazes isto na tua casa! Já te disse que não te quero a estragar as minhas coisas!''
Num impulso, agarra a miúda pelos cabelos e espeta-lhe duas sonoras chapadas na cara. As lágrimas brotam, os soluços interrompem-lhe a respiração e ela encolhe-se com os braços a protegerem a cara encarnada.

''...Eu, eu não... não...''

''Isto é porque a tua mãe te deixa fazer tudo. Nunca és castigada por nada! Vai para a sala! Não mexas em nada!''

A miúda de pijama cor de rosa corre para a sala, e de gatas passa por entre as pernas de uma cadeira para debaixo da mesa. 
O gato espreita debaixo da cama para a boneca de plástico jogada em cima da pilha de legos.

À hora do almoço uma mulher parecida com a tia, talvez um pouco mais nova, toca a campainha e é saudada de maneira cautelosa. A miúda do pijama cor de rosa, aproxima-se com um andar furtivo, lágrimas a marulhar nos olhos.

''Joaninha! Que aconteceu?''

A manhã acaba com aquelas conversas de adultos à porta fechada, que deixam quem fica de fora a sentir-se como um julgado à espera do regresso dos jurados para ouvir um veredicto incerto.

''... ela já não tem idade para estas coisas...'', ''...se isto agora é assim, imagina daqui a uns anos...''. ''...Há uma altura em que  ela tem aprender que há regras e que temos que ter responsabilidade pelo que fazemos...''

A miúda do pijama cor de rosa está sentada entre dois sofás, a abraçar as pernas flectidas. Um nó na garganta faz com que seja obrigada a olhar para baixo, por cima dos joelhos, para as meias velhas que tem calçadas.

''Anda Joana. O teu pai está no carro à nossa espera. Diz adeus à tia.''

Um murmúrio, um gesto com a mão, olhos pregados no chão.

A viagem faz-se em silêncio. O alívio pós pânico vai-se sobrepondo à dor surda que mói as tripas da miúda do pijama cor de rosa, agora de camisola verde, a olhar pela janela do carro as árvores que correm na direcção oposta.

 ''... e fez uma série de desenhos na parede da minha irmã...''

''E depois? Ela limpa a parede, o que é que lhe custa? Não tem nada que arrear na miúda.''

'' Sabes como era o nosso pai... E ela está preocupada, diz que a Joana é indisciplinada, e não tem regras nenhumas.''

No dia seguinte, a miúda dos sapatos ténis azuis entra no Centro Comercial com passo cauteloso mas olhos arregalados. ''Joana, queres ficar na loja de animais enquanto o pai vai aqui beber um café rápido? Temos que ir ter com a mãe depois...''

''Sim!'' O pai encosta-se ao balcão a olhar para a entrada da loja, com a mistura de paciência e entusiasmo de quem apenas deixa a natureza tomar o seu rumo expectável.

Dez minutos depois entra na loja, na direcção da miúda dos sapatos ténis azuis e cara espremida contra o vidro da coelheira.

''Pai, pai! Olha aquele coelho mini! A senhora diz que é um coelho anão! Tem orelhas cor de rosa!''

''É muito simpático. Olha, está a coçar os bigodes.''

''Olha, Paaaiii...''

À saída do centro comercial, um pai de olhos semicerrados e uma expressão malandra vem de mão dada com uma miúda de sorriso aberto com um coelho nos braços. A miúda faz festas obsessivas no coelho, embala-o e fala com ele. 
A mãe está absorvida a ver uma montra, e quando os vê chegar revira os olhos.

''O que é que tens aí? Não me digas que o teu pai te comprou o coelho!? Já tínhamos falado sobre isto! Quem é que vai tratar dele? Vai sobrar para mim! É sempre a mesma coisa, fazem tudo pelas minhas costas e eu acabo a ter o trabalho todo.Vais voltar para a loja e devolver isso agora mesmo!...''

''Calma, a Joana vai tratar do coelho, estivemos a combinar...''

Os dois afastam-se uns metros e continuam a conversa em surdina, ele suporta argumentos com as palmas das mãos, indeferidos pelos braços cruzados e sobrolho carregado dela. A miúda dos ténis azuis continua junto à montra a fazer festas ao coelho, olhar preso num horizonte que acaba na napa do banco da frente.

Cerca de quinze minutos depois o pai coloca o último saco no porta bagagens, e depois a viagem faz-se em silêncio. A miúda continua a fazer festas no coelho, agora a 72 rotações por minuto, o pai espera pelo semáforo verde com ar desinteressado e a mãe continua de braços cruzados.
Está trânsito, o carro arrasta-se alguns metros até ao carro da frente, num progresso incremental que parece um soluçar teimoso.

''Achas que assim ela vai aprender algumas regras? A fazeres tudo o que ela quer?''

''Se calhar tratar de um animal de estimação é capaz ensinar alguma responsabilidade à miúda, em vez de lhe enfiar lambadas no focinho por qualquer merdice que ela faça, normalíssima na idade dela.''

''Vai-lhe ensinar cá uma responsabilidade, tratar do coitado do bicho durante uma semana! Porque depois disso, vou eu ter que eu limpar cada cagada que o coelho faça, quando ela começar a não ligar nenhuma. E se for como de costume também sei com o que posso contar da tua parte. ''

''Eu fico sempre parvo com a tua capacidade de ler o futuro, e adivinhar o que vai acontecer. Arranjavas emprego com o professor Karamba, se alguém tivesse puto de interesse em saber que vilanagem é que a besta do teu marido vai fazer a seguir.''

''Não é preciso ler as cartas, basta lembrar-me da última vez que te pedi que chegasses a horas para irmos ver a minha mãe.''

''Não estou mesmo a ver como é que essa porra vem ao assunto.''

No banco traseiro, uma miúda de ténis azuis agarra-se a uma bola felpuda que tenta resistir a festas decididas e abraços ritmados. Mãos que apertam orelhas cor-de-rosa e feições inexpressivas, resistentes às dentadas ocasionais do bicho.

''Pois, o que eu sei é que tu ficas sempre como o gajo porreiro que faz as vontades todas à menina, e eu sou a burra de carga que tem que acarretar com o trabalho todo.''

''Olha, estou farto desta conversa. Eu farto-me de trabalhar a semana toda, para chegar ao fim de semana e aturar sempre a mesma merda de conversa, e para mais...''

''Ui, ui farta-se de trabalhar, coitado... Foi de trabalho que estavas bêbado a última vez que chegaste às três da manhã a casa? O teu bafo tinha cá um cheiro a ''trabalho'' dessa vez...!''

''Epa, ninguém te atura com essa conversa de vaca ressabiada...''

''Eu não acredito! Eu não acredito que acabaste de me chamar vaca à frente da menina! A sério, agora mostraste mesmo aquilo que és, és uma besta, não dá mesmo para falar contigo... És um animal, és um bêbado!''

O carro pára à beira do passeio e os adultos saem a vociferar.

O espaço público faz com que baixem a voz, e o tom da discussão desce um pouco. A acalmia relativa faz como que o pai se aperceba que se esqueceu das compras e da filha, que continua dentro do carro com o coelho no colo. Ele aproxima-se e abre a porta do carro.

''Joana, anda lá... o que aconteceu?

A resposta vem com uma nota de desespero na voz.

''Não sei, não sei, eu estava a abraçar o coelhinho e ele ficou parado... eu não fiz nada, eu não sei, pai o que aconteceu ao coelho, o que é que eu faço?... o que é que eu faço?''

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Nessa noite, quando a miúda do pijama cor de rosa finalmente adormece na cama dos pais, eles sussurram no escuro antes de adormecerem.

''Eu já tinha percebido que ela não estava bem, mas isto... A minha irmã tinha razão...''

''Como é que ela tinha razão?''

''Que a menina não tem regras e não tem noção. Isto agora foi demais. Ela não pode fazer tudo para chamar à atenção....''

''Hum...''

''Para a semana temos que a levar à psicóloga.''


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quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Visões do Apocalipse

Olá. :)


A ideia de um destino final para a espécie humana é intimidante e hipnotizante ao mesmo tempo. É aquele tipo de abismo para o qual não conseguimos deixar de olhar colectivamente com um alternar entre curiosidade mórbida e cepticismo irritado.

Como uma criança que ainda tem dificuldade em apagar a luz antes de dormir, sem antes ver se há ou não monstros debaixo da cama.


A verdade é que já ouvimos esta história antes. Já sabemos que o calendário Maia não matou ninguém, que os cometas são só bolas de gelo espaciais, e que os extraterrestres não estão à esquina esperando o melhor momento para nos invadir e escravizar.

Temos olhado para debaixo da cama à procura de monstros, mas só temos visto rodapé e bolas de cotão. Ainda bem.


Mas para morrer basta estar vivo. É o tipo de coisa que só precisa (só pode) acontecer uma vez. Sabemos que um dia, (esperemos que daqui a muito tempo), o último dos nossos descendentes vai desaparecer.

As variações católicas desta história ainda tem um impacto grande sobre a nossa psique colectiva, mas há muitas maneiras de contar esta história. Talvez porque ser humano é muito identificar padrões e desenvolver cogitações acerca do futuro - ponderar factos conhecidos, e extrapolar consequências e cenários especulativos sobre o que vai acontecer. Esta é a nossa grande força, mas a nossa reacção aos cenários que projectamos pode ser uma fraqueza importante.


O Apocalipse é a história que contamos a nós próprios sobre o fim dos tempos, assim como o Genesis é a história sobre o início.
Será que podemos perceber alguma coisa sobre o fim, se pensarmos sobre as histórias que contamos a nós próprios sobre o princípio?

Bem, no princípio, Deus Criou a Terra.
E o que é que criou Deus? Deus sempre existiu, claro...

Pois.... em relação a isso, há uma história que está na moda agora com o livro do John Green.

Um dia, uma senhora de idade assistia atentamente a uma palestra de um cientista conceituado, sobre o nosso Sistema Solar e a Via Láctea.

No fim da palestra, a senhora levantou-se e pediu respeitosamente a palavra: ''Isso que nos disse são tudo tretas e histórias para adormecer crianças. Na realidade, o mundo é como um prato raso, que está às costas de uma tartaruga gigante!''

O cientista perguntou, um pouco condescendente: ''Muito bem. Mas então a tartaruga está em cima do quê?''

Ao que a senhora retorquiu sem pestanejar: ''Você é muito arguto, jovem, muito inteligente....

Mas é tartarugas até lá abaixo!''



Bom, por aqui a história acaba rápido. Tentando de outra maneira:
O que é que veio primeiro? O ovo ou a galinha?


Aristóteles acreditava que ambos existiram sempre.
O que é uma ideia estranha, para seres humanos habituados a um mundo de causas e efeitos. 
O ''princípio de todas as coisas'' tinha que ser um ''efeito sem causa''. Um ''mobilizador sem mobilização''.

Novamente, ''Tartaruras até lá abaixo''.

Sei lá, um ''deus galinha eterno'' que pôs o primeiro ovo, ou um ''ovo eterno'' que se pôs a si próprio.


Os Creacionistas, baseados no Genesis, mantêm que a galinha veio primeiro. Deus criou os animais e as plantas, galinhas incluídas. Depois é que as galinhas começaram a pôr ovos.

Não sei qual é problema em pensar na hipótese que Deus punha ovos, nem porque é que isso é mais estranho que ''criar'' uma galinha. No entanto, acho que a comunidade religiosa ainda tem outro paradoxo para resolver que gera ainda mais perplexidade.

(Se os coelhos põem ovos na Páscoa, porque é que Deus não fez o mesmo no Genesis?)

Para aqueles com pensamento mais literal (e que gostam do rótulo 'científico'), os ovos apareceram há muito mais tempo que as galinhas, basta ver o Jurassic Park, para perceber que os dinossauros punham ovos em barda.

Já encontramos ovos de dinossauro fossilizados com 190 milhões de anos, e o Archaeopterix (uma espécie de dinossauro que foi ''avô'' de muitos pássaros) tem 150 milhões de anos.

Os dinossauros punham ovos, e os pássaros vieram dos dinossauros.


Resolvido. Pois. Mas estávamos a falar de ovos de galinha exclusivamente, ou de ovos de dinossauro? Basta mudar um pouco a pergunta e estamos de volta ao ponto de partida.

''O que veio primeiro? O ovo de galinha ou a galinha?''

Para complicar ainda mais, se os ovos de dinossauro apareceram antes do que os ovos de galinha, muitos dinossauros como actualmente os conhecemos, pareciam galinhas (tinham penas).

(PAPAPA.....PA-CÁÁÀÀ)  

As penas não servem só para voar. Muitas têm cores vivas que são exibidas na escolha de parceiro sexual. A qualidade das penas define se aquele pássaro (ou dinossauro), vai ou não ter hipótese de produzir ovos. Sabe-se hoje que os dinossauros tinham penas e faziam ninhos. E dançavam, a abanar as suas bonitas plumas para atrair as fêmeas dinossauras.

(a internet é um sítio fabuloso)

Sendo prático, a conversa do ovo-galinha é uma pergunta estúpida se não for colocada para fins puramente retóricos. Estamos a usar definições humanas, construções teóricas, enxertados na natureza. Para pensar sobre a realidade e comunicar uns com os outros, é preciso definir limites, unidades de medida, classificar e catalogar os nossos conceitos. É importante lembrar que estas ferramentas que encontramos para representar a realidade, não são a realidade.

E o que é que isto interessa?
Not much by itself...

Mas as divagações sobre qual o preciso momento em que a vida ''começa'', ainda não deixaram calar muitos manifestantes pró e contra o aborto, por exemplo.

(estes senhores ''pró-vida'' claramente acham que o ovo existe antes da galinha)

O que é que veio primeiro? O ovo ou a galinha?

Quando é que a vida começa? 

A vida na Terra é um processo contínuo que começou há biliões de anos, e neste caso está a ser representada com as ferramentas humanas para contar uma história, em que uma personagem aparece antes da outra. A pergunta faz-nos confusão porque pensamos no ovo e na galinha como entidades distintas, mas na realidade, o ovo e a galinha são a mesma personagem, a mesma entidade, em fases diferentes de uma existência contínua desde a sopa primordial.


Muitas religiões acreditam que o mundo começou ''um dia'' com Deus a acender as luzes. E que vai acabar ''um dia'', com Deus a apanhar as luzes e a fazer um ''julgamento final'' em que define quem é que se portou bem e vai comer bolo para o céu, e quem e que é que vai passar a eternidade a levar com forquilhas no rabo no Inferno.

(Se Deus é omnisciente, porque é que não convoca as pessoas por email, em vez de por relâmpago?)

Portanto, o que é que a maneira como nós contamos histórias sobre o príncipio da existência nos diz sobre a maneira como vemos o fim do mundo?

Diz-nos que temos tendência para simplificar as coisas, e a ser levados por argumentos baseados na autoridade/antiguidade. A arte da profecia vive de vieses de confirmação, e que depois de sabermos o que foi o Big Bang, é fácil dizer que era a isso que o Genesis se referia quando Deus disse ''Faça-se Luz''. 

O mesmo fenómeno está na base desta notícia de um jornal inglês, que defende que o Nostradamus previu a vitória de Donald Trump, e que isso vai levar ao fim do Mundo.

No entanto, porque é que o Nostradamus a prever o Donald Trump é inferior ao capítulo das Revelações da Bíblia, na arte da profecia? 

A citação de Nostradamus é: "The great shameless, audacious bawler. He will be elected governor of the army: The boldness of his contention. The bridge broken, the city faint from fear.” 

Parece-me tão críptico como o epílogo da Bíblia, com os selos do cordeiro de Deus, a sequela do Jesus Christ Superstar e os parceiros de equitação - morte, fome, guerra e conquista.


Como com a história dos ovos, das galinhas, e dos dinossauros, a ciência tenta substituir o nicho de explicação da realidade antes ocupados pela religião e pela filosofia. Não quer dizer que tenha respostas definitivas, ou sequer que as profecias científicas sejam mais precisas que as religiosas.

Mas as narrativas do apocalipse com base científica têm o apelo de descrever improbabilidades verossímeis, e não só criar alegorias vagas para o futuro interpretar.

Por muito estúpidas que algumas delas pareçam.

Asteróides a colidir com a Terra, guerra nuclear, inversões geomagnéticas rápidas, invasões alienígenas, buracos negros ocultos a engolir o sistema solar, vírus que transportam doenças neurodegenerativas que transformam as pessoas em zombies! bUHHHH BuHH BUUh! :P

A ciência tem vindo a misturar-se nas narrativas que criamos sobre o fim do mundo, o que provoca estados emocionais antes reservados a quem escutava sacerdotes em sermões exaltados.

E é isso que acho interessante. Desde os cultos dos cometas e a cientologia, passando pelo impacto destas histórias nos filmes de Hollywood sobre o fim do mundo, até à narrativa cientificamente validada sobre o aquecimento global e a depleção de recursos.

O fim do mundo é cá uma história! 

Comecem a juntar latas de atum no vosso Bunker improvisado, porque vamos continuar a falar sobre isso em Pataniscas próximas!
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domingo, 24 de setembro de 2017

Cheesy

Esta é uma história sobre macacos, e as histórias e as mentiras que eles contam. :)

Durante milhões de anos, os nossos antepassados macacos andaram de árvore em árvore, até desenvolverem destreza manual suficiente para gesticular uns para os outros.


Quando desceram das árvores, os macacos que gesticulavam começaram a usar paus e pedras para fazer ferramentas. Os primeiros foram usados para caçar, cortar e preparar o jantar, e não passavam de pedras afiadas.

Muitos anos depois, os macacos começaram a grunhir uns para os outros, tentando transmitir significados. Ao longo de centenas de milhares de anos, os macacos grunhiram uns para os outros, até que lentamente, alguns macacos nalguns sítios, começaram a concordar com alguns significados específicos, para grunhidos específicos. 

Isto foi espectacular, e viria a dar imenso jeito. A linguagem melhorou brutalmente a comunicação entre os macacos, e permitiu todo o tipo de coisas novas.

Inclusive, viria a fazer com que os macacos se convencessem uns aos outros que tinham deixado de ser macacos, porque conseguiam falar. Mas nós sabemos a verdade. Os macacos gostam de mentir, neste caso, a eles próprios. :)


À medida que os macacos grunhiam uns para os outros a transmitir mensagens cada vez mais bem construídas, alguns macacos aperceberam-se que era extremamente útil transmitir mensagens que não eram verdade. Convencerem que não tinham roubado, ou morto alguém, ou insistir que tinham conseguido caçar um tigre dente-de-sabre do tamanho de um elefante, seria útil para impressionar um amigo, ou intimidar um rival.

Ainda hoje, toda a gente sabe que há 3 tipos de mentirosos. Os pequenos, os grandes, e os caçadores.


Portanto, à medidas que fomos ficando melhores a comunicar uns com os outros, fomos competindo uns com os outros. Sempre dos dois lados da barricada. Umas vezes, somos nós os macacos mentirosos. Outras, somos nós o macaco que desconfia que nos estão a mentir. Isto vem acompanhado de sentimentos de indignação justiceira. 'Como é que ele se atreve?'

Porque é que ficamos zangados, se todos mentimos? Os médicos sabem há muito tempo:


Por exemplo, este estudo da Universidade do Massachusets descobriu que 60% dos inquiridos mentiu 2 a 3 vezes numa conversa de 10 minutos.

Não dizer a verdade. Mentir. Uma das pequenas facada no contrato social que reprovamos nos outros, mas que por vezes somos obrigados pelas circunstâncias a fazer nós próprios. Porquê?

Por vezes o contrato social deixa-nos encurralados.

Uma treta muito comum acontece quando chegamos atrasados, ou faltamos ao emprego ou à escola. Quando falhamos um prazo, E é tão mais fácil inventar um transporte atrasado, um furo no carro, do que admitir que não somos perfeitos. Até porque admitir que não somos perfeitos pode levar a chumbar uma disciplina, ou a perder o emprego.


Porque a alternativa pode ser desnecessariamente cruel. Esta é uma das racionalizações que usamos.
''Eu não podia dizer a verdade, porque não queria que ele ficasse magoado...''

Quando um amigo nos mostra uma música, ou um vídeo, de que não gostamos, ou para o qual não temos paciência, que vamos fazer? Vamos ver o video, ouvir a música. Às vezes fartos, outras contrariados, mas no fim dizemos que gostámos. Que vamos ouvir o álbum. Que vamos ver um episódio da série. Porque a alternativa pode ser o nosso amigo deixar de nos mostrar coisas interessantes. E isso é cruel para ele, e estúpido para nós. Porque queremos que os nossos amigos continuem a mostrar-nos coisas.

Mas continuamos (e bem) a ensinar às crianças que mentir é muito feio. Esta teoria pode ter uma confrontação divertida com a realidade.


Quando chegamos a adolescência, e descobrimos que o mundo dos adultos, que julgávamos perfeito, está cheio de políticos mentirosos, corrupção, escândalos financeiros, ficamos zangados, e com um sentimento de que fomos traídos. Estivemos a respeitar regras que pessoas com mais experiência que nós, não respeitaram. E retiraram benefícios disso. Pensamos que somos macacos espertos por descobrir, e sentimos a indignação justiceira. Alguns de nós querem endireitar todos os males do mundo nesta fase da nossa vida. E ainda bem. A intervenção cívica deve ser incentivada.


Quando somos jovens, é fácil sentir que o mundo não presta. Ou pelo menos que não era aquilo que nos venderam quando fomos crianças. Isto pode ajudar a explicar a atitude cínica de muitos adolescentes. Que pode ser absolutamente superficial também. Está brilhantemente ridicularizada neste clip do Family Guy.

(No it's lame. Everything is lame...)

Esta ideia de lame - foleiro, piroso, fatela - aparece na adolescência, por oposição ao que é cool - fixe, porreiro, com nível. Cenas, tipo, boa onda. 
Não é necessariamente uma mentira, mas é alguma coisa não original, pouco autêntica. Por oposição ao fixe, original, verdadeiro.

Ao genuinamente fixe. :)

Cool (fixe) quer dizer por definição, fresco. Não muito quente, nem muito frio. Just right. 
E é completamente subjectivo, como não podia deixar de ser. 

Tem muito a ver com identidade de grupo. E com seguir tendências de artistas de referência. 

Queremos ser fixes e não foleiros. Para os nossos amigos gostarem de nós. Mas não conseguimos ser fixes só por querermos muito. Aliás, esta é uma maneira muito fácil de ser foleiro. Não há nada mais foleiro do que alguém que tenta muito ser fixe. Passar agressivamente a impressão do que somos mais fixes do que na realidade somos. É uma maneira de mentir, de manipular. Isso é foleiro.


E se ser foleiro é mau (por algum motivo), ser lamechas ou piegas é pior. Cool, não quer dizer só autêntico, quer também dizer distante emocionalmente.

Mas os seres humanos têm emoções fortes. Muitas. Como vimos antes, são dos principais motivos que levam as pessoas a mentir. Não querer perturbar o nosso autoconceito. Não querer magoar as emoções dos outros. Mas não queremos criar um meio onde seja sempre inapropriado expressar certas emoções. Agora, como expressar emoções da maneira cool - distante emocionalmente?
Porra, a vida na adolescência não é nada fácil...

Uma das coisas a que somos todos sensíveis, é à lisonja. Alguém que diz bem de nós, deve ser esperto. Deve ser cool :). Mas desde que somos adolescentes ouvimos a nossa mãe a dizer bem de nós, e sabemos que ela definitivamente não é cool. Alguém que expressa emoções fortes acerca do nós é facilmente catalogado como inautêntico, não original, foleiro, piegas. 
Alguém que está a tentar demasiado.

Provavelmente está a manipular-nos cinicamente...

Because it's lame, everything is lame. Like totally, whatever. :)


Que se conclui daqui? Nada. It's an ongoing debate. Uma luta entre mentirosos e mentidos, entre adolescentes cool e lame, uma luta entre piroso e autêntico. E estamos todos, à vez, de ambos os lados da barricada, sendo que a definição dos conceitos é sempre participada pelos dois lados envolvidos na comunicação. E todos os dias os conceitos aperfeiçoam-se.

Os macacos continuam a mentir, a lisonjear, a desconfiar e a dissimular. E também a expressar emoções verdadeiras, a comunicar de maneira pungente, a desenvolver cumplicidade e vínculos significativos.

Finalmente, em relação às emoções fortes, suponho que um ''boa regra de polegar'' é procuramos dentro de nós próprios porque é que estamos a expressá-las.

Se nascem de um lugar de insegurança, de raiva ou de necessidade de fazer mover os outros numa certa direcção através das nossas palavras bonitas, então se calhar é melhor ter cuidado

Se nascem de um momento positivo, de euforia desinteressada, porque não?

O que é o pior que pode acontecer? Sermos vistos como lame?

Oh, grow up.
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quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Hinos e Festivais de Verão

''Eternal Father strong to save,
Whose arm hath bound the restless wave,
Who bidd'st the mighty ocean deep,
Its own appointed limits keep;
Oh, hear us when we cry to Thee,
For those in peril on the sea...''

                  -Naval hymns - Eternal Father strong to save



Um dia, num passado não muito distante, estive em Londres a passar férias. Como não tinha dinheiro, acabei por ficar no Hostel mais barato que encontrei. A casa Baden-Powell, chamada assim em homenagem ao pai do Escutismo.

Não me lembro de muito da estadia. Mas lembro-me que num domingo, depois de descer a Cromwell Road a caminho do Hostel, cansado por várias incursões em atracções turísticas, ouvi um burburinho na distância.

O som cresceu de intensidade quando me aproximei do ginásio do Hostel. Percebi que se tratava de um cântico arrastado, litúrgico. Abri a porta, e deparei-me com muitas dezenas de Ingleses a cantar uma música que não conhecia.

''Eternal Father, strong to save...''

A cena era hipnótica. Senti os pêlos dos braços a eriçarem-se, o coração a acelerar no peito, e um revolver eléctrico na barriga. Um misto de reverência e de solenidade. Aqueles minutos de um hino sincero, fizeram mais pelo meu entendimento sobre a fé católica do que vários anos de catequese.

A minha memória transformou aquele ginásio despido numa Catedral majestosa, onde o eco daquele hino histórico reverberava em paredes de mármore com centenas de ingleses de peito erguido e cabeça curvada, cantando a Deus em uníssono com os tubos colossais de um órgão cerimonial.


O objectivo da música era que Deus, na sua misericórdia infinita, ajudasse e protegesse os filhos de Inglaterra quando eles estivessem no mar. E o revolver eléctrico que eu sentia na barriga deixava poucas dúvidas que o hino devia estar a funcionar na perfeição.

É difícil encontrar músicas contemporâneas, que provoquem emoções semelhantes.
Talvez ouvir o hino nacional antes da final do europeu de futebol entre Portugal e França.


Toda a gente no café olha fixamente a televisão. Pousam as mesmas garrafas de Sagres que acabaram de aparecer no spot publicitário imediatamente antes, alguns crentes põem a mão no peito e até os pratos de lombinhos descansam uns minutos, enquanto as câmaras percorrem os rostos dos jogadores que cantam a Portuguesa. Queremos que eles sintam o revolver eléctrico na barriga, e se algum deles não canta o hino, ou parece distraído, vai ser alvo de comentários depreciativos após o estádio explodir em aplauso.

Os hinos nacionais aclamam o nosso passado comum. Comum é a palavra chave aqui. A celebração do que partilhamos, a nossa herança colectiva. Não interessa muito o que está a ser celebrado. Qualquer povo, as emoções são as mesmas.

Em sociologia, há uma teoria que defende que os nossos auto conceitos pessoais, têm uma parte em comum. A parte em que acreditamos/percepcionamos que pertencemos a um grupo social relevante, com um conjunto de características mais ou menos bem definidas.

Chama-se a teoria de identidade social. Quando cantamos hinos, estamos a celebrar a parte do nosso auto conceito que percepcionamos como tendo em comum com todos os portugueses, ou com todos os benfiquistas, ou ou hino das crianças que estão a espera do início dos desenhos animados nos os anos 90.


Esta sensação de euforia solene, é uma qualidade de algumas músicas que mais ou menos formalmente vai aparecendo em várias músicas, hinos nacionais ou músicas pop/rock.

Por exemplo, em 1982, Sylvester Stallone pediu aos Queen para usar a música ''Another one bites the dust'', como música temática no filme Rocky III. Os Queen recusaram, e Stallone pediu ao grupo Survivor, para escrever uma música para o filme. O resultado vive na nossa memória colectiva como um dos melhores hinos desportivos, ainda ouvidos em muitos ginásios, e por quem quer que se queira motivar para atingir um objectivo.


A música celebra o individualismo, o sacrifício em nome da perseguição de um objectivo pessoal, contra todas as hipóteses, contra todas as dificuldades. Uma crença cega de que somos capazes de chegar lá, de concretizarmos os nossos sonhos, de sermos o que aspiramos. Sentimos um revolver na barriga, e corremos mais depressa, vamos mais longe.

Crença cega de que somos capazes. Outra maneira de dizer fé em nós próprios. Fé. Como os ingleses, que cantavam a fé em Deus para proteger os filhos de Inglaterra no mar.

Agora, porque é que Stallone queria usar uma música dos Queen no filme Rocky III? Talvez porque em 1977, um Freddie Mercury em cuecas andava a fazer isto pelos palcos do mundo.


Uma a seguir a outra, We will rock you, e We are the champions. Músicas eternas e geniais, que tocaram no fim dos torneios de muitos desportos durante décadas.

A percussão de 'We will rock you', cria a impressão que muitas pessoas dão força à música, e isso faz sentido, se pensarmos que a música foi inspirada num momento, em Birmingham, quando a plateia cantou o hino 'You will never walk alone', em resposta ao encore que os Queen tinham acabado de fazer.

Estes hinos dos anos 70 e 80 glorificam a busca individual de objectivos, mas também a força que temos juntos, o poder das emoções humanas. No entanto, mesmo quando descrevem a busca individual de objectivos, descrevem de maneira vaga o suficiente para poder ser sentida por qualquer pessoa. Não há uma música sobre um jovem que quer ser especialista em caranguejos-violinistas. Isso é um interesse de nicho. Mas um jovem que quer ser especialista em caranguejos violinistas, pode treinar para ter o melhor 'eye of the tiger' a descortinar quelípodos.


Ou coiso.

''Isso era bonito nos anos oitenta, mas e qualquer coisa mais recente? Toda a gente sabe que a música perdeu qualidade ao longo dos anos, e que hoje somos muito mais misantrópicos.''

Sei lá...



''I'm gonna fight'em off,
A seven nation army couldn't hold me back.
They're gonna rip it off,
Taking their time right behind my back.
And I'm talkin' to myself at night because I can't forget,
Back and forth through my mind,
Behind a cigarette''

Esta música energética dos White Stripes tem a força de um hino.

Não foi por acaso que durante o festival de verão inglês Glastonbury em 2017, que hordas de jovens ingleses começaram a cantar o nome do socialista, líder da oposição, e principal adversário de Theresa May.


O quê?!? Jovens de férias em países de primeiro mundo, a interromperem concertos das suas bandas favoritas para cantar o nome de um político ao ritmo da música Seven Nation Army dos White Stripes?

Was it Opposite Day?

Aconteceu num festival de verão.

Milhares de pessoas a assistirem a música ao vivo, a cantarem em uníssono, a dançarem como se ninguém estivesse a ver. A multidão ondula ao som da música energética, aplaude em sintonia os ritmos ou levantam os isqueiros a acompanhar as músicas que os levaram a gostar da banda.

Porque será que isto:


Quase que faz lembrar isto:


O palco esta iluminado a meia luz, a banda está em transe ofuscado por cortinas de fumo, e quando a música acelera, as luzes coloridas varrem a multidão que salta. Os amigos dançam abraçados, os casais beijam-se apaixonadamente.

A noite está morna da euforia contagiante que levou milhares de jovens a deixarem as suas casas em peregrinação a das grandes cidades até à periferia.

Aproveitem os hinos e o verão. Daqui a pouco faltam 3 meses para o Inverno.

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segunda-feira, 31 de julho de 2017

As Geringonças do Diabo - Estátuas Vivas

...''Las tumbas son para los muertos
Las flores para sentirse bien
La vida es para gozarla
La vida es para vivirla mejor
Calaveras e diablitos
Invaden mi corazón...''

Los Fabulosos Cadillacs - Calaveras e Diablitos

Turistas....

Quando tinha 16 anos, o meu filme preferido foi o Fight Club. Um filme em que Edward Norton contracenava com Tyler Durden (Brad Pitt), como duas personalidades da mesma pessoa que reagia de maneira agressivamente esquizofrénica contra o estilo de vida imposto à classe média americana pela sociedade de consumo. Foi o tema de um dos primeiros textos que escrevi nas Pataniscas.

Nas primeira meia hora do filme,  a personagem de Edward Norton infiltra-se em grupos de apoio a doentes com doenças malignas, onde conhece Marla Singer (Helena Bonham Carter).

Marla é outra infiltrada saudável, ou como ele lhe chama - 'A grande turista'.


That is unnerving.

Eles são turistas no meio de pessoas com doenças graves, para usufruir do que consideram interacção humanas genuína. Provavelmente porque quem está às portas da morte tem uma perspectiva elevada do que é verdadeiramente importante na vida.


Há alguma coisa que soa de falso, de pejorativo no conceito de turista. Alguém que não é de cá, que não conhece os costumes e a cultura, e que ainda por cima está de férias. Talvez por isso a hospitalidade é um sólido princípio católico_ ser amável para estranhos, que provavelmente nunca terão a possibilidade de reciprocar a gentileza.

Reajo de modo ambivalente aos turistas. Gosto de ver a rua cheia de gente meio perdida, com aspecto que está a participar num jogo de pista que exige uso de óculos escuros, mas por outro lado irritam-me quando estão a entupir os restaurantes, ou a olhar de maneira interrogativa para a máquina que vende bilhetes no metro

Provavelmente é inveja.

No caminho para o trabalho tenho que atravessar o Terreiro do Paço e a Baixa, e é impossível não lhes invejar o passo lânguido, o olhar panorâmico, a t-shirt casual. Estão por todo o lado. De mochila às costas, nas ruelas da mouraria,  sentados nas fontes do Rossio, reclinados nas cadeias das esplanadas a empunhar copos de vinho caro numa mão e pasteis de bacalhau recheados com queijo da serra na outra. Comem descontraidamente, enquanto enchem de gordura as páginas da última edição do lonely planet.

Nos últimos anos as caixas multibanco têm brotado na Baixa. Peço desculpa, não são caixas multibanco, são ''ATM's''. Que é estrangeiro para caixa multibanco que cobra comissões pouco simpáticas. E os turistas fazem fila atrás delas para sacar euros às centenas, a gastar nas lojas de souvenirs e nos pastéis de nata.


Toda a gente sabe que se os turistas gastarem dinheiro na economia local, isso é bom para o consumo, o que leva a crescimento e cria empregos. Mais procura ao longo do tempo leva à necessidade de criação de mais oferta. E a preços mais elevados. Mas será que isso é assim tão simples e sem efeitos adversos?

Já se os salários dos locais aumentarem, e forem eles a gastar dinheiro na economia, isso já não é bom (por algum motivo...), e vem aí o papão da Dívida, da Troika e o Diabo.

Não faço ideia o porquê destes dois pesos e duas medidas. Será que as notas dos turistas estão a vir directamente do Banco Central Europeu, enquanto as nossas vêm de um tabuleiro do monopólio edição Belzebu? Em vez de cartas da sorte, temos cartas da danação eterna da gentrificação, e provavelmente a autarquia demoníaca emite multas de estacionamento em barda e mete-as directamente na caixa da comunidade. Porque como as coisas estão, prefiro uma tarde a tomar banho no lago de fogo, a deixar o carro no parque dos Restauradores.


Será que é esse o significado dos estacionamentos na ''zona vermelha'' da cidade? A confirmar-se, os parquímetros deviam ser pintados de vermelho vivo e ter cornos compridos.


Acabo a tarde a dar a volta à Rua Augusta e a parar à beira de duas estátuas vivas, pintadas de bronze. As estátuas estão vestidas de fadista e de guitarrista, e suam debaixo do calor de julho por meia dúzia de moedas que casais de meia idade lhes deixam cair no chapéu, depois de lhes tirarem fotografias. A metáfora perfeita para o mercado de trabalho no período pós Troika.


As estátuas vivas fazem vénias delicadas, depois de uma fazer cócegas a um simulacro de guitarra portuguesa, a outra com um esgar de quem está a sentir uma Casa Portuguesa a correr-lhe nas veias, se não a vibrar-lhe nos lábios, com certeza. O fado mudo das estátuas vivas na Rua Augusta soa-me a ecos do ano distante de 2011.

Consigo ouvir comentadores que segregam frases enlatadas do enclave ideológico a que pertenciam quase todos. Entre segmentos noticiosos sobre a dívida pública e mudanças ao código de trabalho, um desempregado, deitado no sofá, absorve as palavras de idiotas engravatados no telejornal, que orientam a vidinha tentando agradar ao poder dominante. Pelo menos na altura... hoje as coisas estão menos certas para os Camilos Lourenços do mundo.

''Temos que empobrecer. Sair da zona de conforto. Criar o próprio emprego. Aproveitar o que o nosso país tem de melhor. Temos que promover a marca Portugal, fomentar o turismo. Está na hora de pôr em prática soluções criativas.''


Hum... Passado poucos anos, somos todos estátuas vivas num mercado de trabalho cada vez mais desregulado e global. 

O governo do PSD/CDS foi para a gaveta, e deu lugar a outro governo de compromisso. O que o centro e a esquerda têm em comum parece maior, depois de estarmos todos sujeitos ao terrorismo psicológico do governo dos bons alunos da Troika. Se provas faltassem que o alarmismo e o medo ainda dominam o pensamento da direita, basta ouvir Passos Coelho na oposição em 2016, com ameaças vagas de que vem aí o Diabo. 


A confiar nas sondagens, parece que a população atirou o Diabo pela escada abaixo, e ele ainda não deu todos os trambolhões que pode dar em direção à cave da mudança de liderança. 

Não veio o Diabo, mas nós estamos na encruzilhada a ver caminhos bloqueados à nossa frente. Parou (ou pelo menos desacelerou) a degradação da nossa vida operada por aqueles que acreditam que o Estado Português teve que resgatar uma série de bancos porque ''a culpa da crise é de todos'', e os bancos faliram porque a população ''gastou acima das suas possibilidades''.

Continuamos, no entanto, como estátuas vivas que fazem vénias delicadas e cantam fados mudos, tudo por meia dúzia de trocos que nascem de uma fresta de concórdia entre o centro e a esquerda.
Estamos melhor do que há 2 anos os fanáticos satânicos nos queriam fazer acreditar que estaríamos, por isso não me quero queixar demasiado. Às vezes uma fresta, uns trocos, umas mexidas no salário mínimo, é o que chega para imaginar uma luz ao fundo do túnel...


As luzes ao fundo do túnel têm o condão de poderem conter tudo o que se lhes quiser atribuir. Enquanto uns acreditam que a saída de uma situação de aperto está perto, outros têm uma perspectiva mais pessimista.


Depende de que narrativa se está mais habituado a acreditar.  

Mas se a esquerda acha que a luz ao fundo do túnel é a salvação da pátria, enquanto a direita diz que o demónio vem com um segundo resgate para nos espetar mais dívida no lombo, tenho que confessar que não faço ideia do que significa a luz ao fundo do túnel. 

Só sei continuo a ouvir falar estrangeiro na Terreiro do Paço.

Os russos e os ingleses param em frente às estátuas vivas, e vêm em duas cores: anemia pálida e vermelho caranguejo.

Passeiam pelas ruas da baixa com malas Prada a tiracolo, onde guardam a espada de dois gumes que é um poder de compra muito superior ao nosso. Por um lado, aumenta o consumo e o emprego na economia local. Por outro, a gentrificação que produz queima-nos os bolsos, como vingança irónica pelo nosso sol que lhes queima as costas. E não há Ambre Solaire factor 50 que nos valha contra o aumento dos preços das rendas dos imóveis e de alguns produtos de primeira necessidade.


Os turistas deambulam nos Restauradores e cruzam-se com velhotas de passo incerto, a caminho do sítio para onde todas as velhotas estão a ir.

Para outro sítio.

Porque os senhorios demoraram 27 segundos a perceber que podiam arrendar um apartamento por meia dúzia de tostões por mês a um casal de reformados com uma pensão média, ou meter um anúncio no  AirBnB e arrendar à segunda a suecos, à quinta a australianas e ao domingo a chineses.


Os senhorios com mais visão reaproveitam os bibelots e as loiças das senhoras idosas, e dão retoques na decoração retro/vintage nos quartos a alugar aos turistas do Air BnB.

É assim que um dálmata de loiça se encontra finalmente com um sofá Ektorp do IKEA, ou que uma máquina da costura se transforma numa mesa de apoio, onde se descansa um televisor LED da Samsung de 30 polegadas. 


É um admirável mundo novo, este que se ergue das cinzas do antigo. Mas será que se pode chamar a isto uma luz ao fundo do túnel? 

Não interessa muito... Como as coisas estão, esse futuro é tão fácil de parar como a rotação da Terra à volta do Sol. Seremos nós que teremos que nos adaptar à nova realidade.


Martin Ron (arte de rua) - ''A morte do bairro''
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quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Ozymandias

Século 19. A Marinha inglesa é a melhor e mais competente à face da terra e o pilar que sustenta o império britânico. Tal como a superioridade aérea permitiu a hegemonia Americana no século 20, a superioridade naval foi a base do império de sua Majestade no século anterior.

Nenhuma batalha demonstrou melhor a superioridade militar dos britânicos do que a batalha de Trafalgar, quando derrotaram as forças navais napoleónicas, e acabaram com a ameaça de uma invasão militar directa na Grã- Bretanha. Em 1805, trinta e três navios comandados pelo Almirante Horatio Nelson destruíram uma frota de 41, comandados pelo Almirante francês Pierre Charles Villenueve.


Nunca ninguém ouviu falar de Pierre Charles. Mas Lord Nelson, que morreu durante a batalha, contou com o eterno agradecimento de sua Majestade e tem uma estátua no centro de Londres. 
Na Trafalgar Square. Afinal, se não fosse ele, hoje em dia o Francês podia muito bem ser a língua oficial em Inglaterra.

O tamanho da coluna é proporcional à importância da vitória. 

Lord Nelson era veterano de várias batalhas, e não avesso a correr riscos. Num ataque a Tenerife perdeu o braço direito, e um olho numa batalha na Corsega.

Numa altura em que a ortodoxia das batalhas navais exigia que os navios se mantivessem em linhas paralelas, para maximizar a capacidade de concentrar o fogo dos canhões, e coordenar o movimento dos navios, Nelson dividiu a sua frota em duas linhas perpendiculares, e avançou a toda a vela contra os franceses.


Isto permitiu-lhe dividir os navios franceses em 3 grupos, e cercar o grupo do meio. Conseguiu obter uma vitória definitiva, numa época em que muitas batalhas navais acabavam em disputas sangrentas, com ambas as frotas desfeitas e os vencedores muito enfraquecidos.

A mensagem que o seu navio - HMS Victory - passou para o resto da frota antes da batalha, foi imortalizada nos livros de história e na cultura popular.


Além de que serviu de inspiração para as forças armadas (e para os civis) em conflitos posteriores.


No fim da batalha de Trafalgar, Lord Nelson morreu atingido por um atirador furtivo francês. Isto transformou-o num herói nacional instantâneo.

Depois da derrota em Trafalgar, o bloqueio/embargo comercial, surgiu como estratégia de recurso a Napoleão. O embargo não foi eficaz. Três países continuaram com trocas comerciais em grande escala com Inglaterra: Portugal, Espanha e a Rússia. 

Napoleão invadiu esses países como retaliação. Todos nos lembramos como isso correu. 
Cá, e na Rússia.

Portugal foi invadido pelo general francês Jean-Andoche Junot com cerca de 50.000 soldados. Napoleão invadiu a Rússia com mais de 600.000. O exército francês - Le Grand Armée - era o exército terrestre mais poderoso e eficaz do mundo.


Lisboa foi ocupada por Junot em 1807 (o Rei fugiu para o Brasil), e Moscovo foi ocupada por Napoleão em 1812. Os Portugueses revoltaram-se nos anos a seguir e expulsaram os Franceses com o apoio do general Inglês Wellington (o mesmo que iria acabar com todas as esperanças de Napoleão em Waterloo). Os Russos... Incendiaram a cidade de Moscovo e deixaram cinzas e gelo para Napoleão passar o Inverno. Ganharam a guerra depois de derrotados no campo de batalha. 

Se Napoleão fosse esperto, tinha evitado ir passar o Inverno à Rússia.


Se Napoleão fosse esperto, sabia que ninguém se mete com a marinha Inglesa.


Mas talvez a memória histórica do Inverno russo e a marinha inglesa tenha sido moldada pelas derrotas infligidas a Napoleão. 

Talvez Napoleão tenha perdido a guerra porque declarou guerra a demasiada gente. Talvez a Europa fosse demasiado grande e com demasiados povos, para aceitar um Imperador.

Não interessa. Não interessa mesmo.

Anos antes, em 1798, durante as campanhas Napoleónicas no Egipto, os soldados de Napoleão encontraram um fragmento de uma estátua enterrada na areia, do maior e mais poderoso faraó que o Egipto conheceu - Ramesses II. As suas campanhas militares e obras arquitectónicas foram reconhecidas pela história como impressionantes. Os seus exércitos de cerca de 100.000 soldados, tornavam o Egipto numa das maiores potências militar da época.


Os Franceses tentaram transportar a Estátua para França, mas pesava várias toneladas, e não conseguiram.

Depois da derrota de Napoleão em Waterloo (1815), os Ingleses começaram a tentar obter a Estátua de Ramesses II. Contrataram o Indiana Jones da época, um aventureiro chamado Geovanni Belzoni, que conseguiu enviar a estátua de 7 toneladas para Londres. Ainda hoje em 2016, podemos ver Ramesses II numa das alas do British Museum.

O buraco no peito, à direita, foi feito pelos homens de Napoleão, que tentaram arrancar a estátua às areias do Egipto

No ano em que o British Museum anunciou a chegada da estátua, um poeta - Percy Shelley- escreveu um poema que tinha como título o nome grego de Ramesses II - Ozymandias.

''I met a traveller from an antique land,
Who said: Two vast and trunkless legs of stone
Stand in the desert. Near them, on the sand,
Half sunk, a shattered visage lies, whose frown,
And wrinkled lip, and sneer of cold command,
Tell that its sculptor well those passions read
Which yet survive, stamped on these lifeless things,
The hand that mocked them and the heart that fed:
And on the pedestal these words appear:
'My name is Ozymandias, king of kings:
Look on my works, ye Mighty, and despair!'
Nothing beside remains. Round the decay
Of that colossal wreck, boundless and bare
The lone and level sands stretch far away.''


(trad)
Conheci um viajante de uma terra antiga
Que disse:—Duas gigantescas pernas de pedra sem torso
Erguem-se no deserto. Perto delas na areia,
Meio afundado, jaz um rosto partido, cuja expressão
Lábios franzidos em escárnio e comando frio
Dizem que seu escultor bem aquelas paixões leu
Que ainda sobrevivem, estampadas nessas coisas sem vida,
A mão que os zombava e o coração que os alimentava.
E no pedestal estas palavras aparecem:
"Meu nome é Ozymandias, rei dos reis:
Contemplem minhas obras, ó poderosos, e desesperai-vos!"
Nada resta: junto à decadência
Das ruínas colossais, ilimitadas e nuas
As areias planas e solitárias estendem-se na distância.

Todas as conquistas de Ramesses II reduzidas a cacos dispersos na areia a serem pilhados por exércitos 3000 anos depois. O tempo arrasa todos os Impérios. Ramesses, Napoleão, o Rei George III, memórias distantes metidas em livros cobertos de pó.

Mas a cultura... os memes, as ideias... essas coisas têm uma maneira de sobreviver, de se aperfeiçoar, de inspirar outros seres humanos a produzirem cultura. De reaparecer quando menos esperamos. 


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