Pataniscas Satânicas

Pataniscas Satânicas

domingo, 26 de novembro de 2017

Smothering the bunny

A miúda do pijama cor de rosa insiste com a tia em como quer comer o chocapic na sala, enquanto vê os desenhos animados do titio avô.

A tia cede. A paciência não abunda àquela hora da manhã.

Depois da tigela vazia, ela bebe o leite castanho e lambe os cantos da boca, e fica a espreitar o gato que dorme derretido no canto junto à almofada grande, na chaise long castanha. Agachada ao lado da mesa, conta os subires e desceres do peito do bicho, barriga para cima, cabeça virada ao contrário, pousada sobre o sofá. Tenta suprimir um riso nervoso cada vez que os bigodes do gato tremem.

Dura pouco a contenção dela, e acaba com uma mão silenciosa pela cesta dos bordados da tia, uma mão que volta com um novelo cinzento claro entre os dedos. Ela atira novelo à barriga do gato, que acorda imediatamente. Ela corre atrás dele, unhas que arranham o soalho encerado, seguidas de passadas desengonçadas pontuadas por risadas excitadas. O gato entra no quarto e desaparece debaixo da cama.

Há uma pequena montanha de brinquedos ao lado da cama. No meio do caos multicolor das peças de lego, duas pernas esguias feitas de plástico emergem, ao lado de um lápis de cera vermelho. Ela pega na boneca e aproxima-a  à extremidade da colcha que vai até ao chão. Rápida como um relâmpago, uma pata aparece debaixo da cama e agarra o cabelo da boneca. Cada patada é seguida de risos eufóricos. No quarto ao lado, alguém se vira impaciente na cama. ''Joana, faz menos barulho! O tio precisa de dormir, chegou ontem tarde...''

Ela pousa a boneca, e espreita os olhos fluorescentes do gato por debaixo da cama. Depois pega no lápis de cera e começa a desenhar numa folha, uma casa, uma árvore, umas orelhas de coelho gigante. O coelho mora na casa, gosta dos desenhos animados do titio avô. As orelhas de coelho fazem com que se lembre do coelho da Alice, num daqueles desenhos animados antigos que a mãe insistiu que ela visse. Um filme dobrado em brasileiro, em que as pessoas cresciam e encolhiam se comessem cogumelos, ou bebessem coisas dos frascos cheios de líquidos coloridos. Ela desenha cogumelos no meio das flores, e o coelho rapidamente lhes está a dar uma trinca enorme. Depois o coelho fica logo gigante, gigante... Não cabe na folha de papel. Ela levanta-se e começa a desenhar umas orelhas gigantes na parede do quarto, com o lápis de cera vermelho. Acrescenta-lhe uns bigodes soltos, e depois um sorriso flutuante como o outro gato do filme. Um gato-coelho gigante que come cogumelos começa a ganhar forma na parede do quarto.

A tia entra no quarto, e a cena faz o sangue fugir-lhe da cara. ''Joana, que é que estás a fazer?! Não acredito, tu não fazes isto na tua casa! Já te disse que não te quero a estragar as minhas coisas!''
Num impulso, agarra a miúda pelos cabelos e espeta-lhe duas sonoras chapadas na cara. As lágrimas brotam, os soluços interrompem-lhe a respiração e ela encolhe-se com os braços a protegerem a cara encarnada.

''...Eu, eu não... não...''

''Isto é porque a tua mãe te deixa fazer tudo. Nunca és castigada por nada! Vai para a sala! Não mexas em nada!''

A miúda de pijama cor de rosa corre para a sala, e de gatas passa por entre as pernas de uma cadeira para debaixo da mesa. 
O gato espreita debaixo da cama para a boneca de plástico jogada em cima da pilha de legos.

À hora do almoço uma mulher parecida com a tia, talvez um pouco mais nova, toca a campainha e é saudada de maneira cautelosa. A miúda do pijama cor de rosa, aproxima-se com um andar furtivo, lágrimas a marulhar nos olhos.

''Joaninha! Que aconteceu?''

A manhã acaba com aquelas conversas de adultos à porta fechada, que deixam quem fica de fora a sentir-se como um julgado à espera do regresso dos jurados para ouvir um veredicto incerto.

''... ela já não tem idade para estas coisas...'', ''...se isto agora é assim, imagina daqui a uns anos...''. ''...Há uma altura em que  ela tem aprender que há regras e que temos que ter responsabilidade pelo que fazemos...''

A miúda do pijama cor de rosa está sentada entre dois sofás, a abraçar as pernas flectidas. Um nó na garganta faz com que seja obrigada a olhar para baixo, por cima dos joelhos, para as meias velhas que tem calçadas.

''Anda Joana. O teu pai está no carro à nossa espera. Diz adeus à tia.''

Um murmúrio, um gesto com a mão, olhos pregados no chão.

A viagem faz-se em silêncio. O alívio pós pânico vai-se sobrepondo à dor surda que mói as tripas da miúda do pijama cor de rosa, agora de camisola verde, a olhar pela janela do carro as árvores que correm na direcção oposta.

 ''... e fez uma série de desenhos na parede da minha irmã...''

''E depois? Ela limpa a parede, o que é que lhe custa? Não tem nada que arrear na miúda.''

'' Sabes como era o nosso pai... E ela está preocupada, diz que a Joana é indisciplinada, e não tem regras nenhumas.''

No dia seguinte, a miúda dos sapatos ténis azuis entra no Centro Comercial com passo cauteloso mas olhos arregalados. ''Joana, queres ficar na loja de animais enquanto o pai vai aqui beber um café rápido? Temos que ir ter com a mãe depois...''

''Sim!'' O pai encosta-se ao balcão a olhar para a entrada da loja, com a mistura de paciência e entusiasmo de quem apenas deixa a natureza tomar o seu rumo expectável.

Dez minutos depois entra na loja, na direcção da miúda dos sapatos ténis azuis e cara espremida contra o vidro da coelheira.

''Pai, pai! Olha aquele coelho mini! A senhora diz que é um coelho anão! Tem orelhas cor de rosa!''

''É muito simpático. Olha, está a coçar os bigodes.''

''Olha, Paaaiii...''

À saída do centro comercial, um pai de olhos semicerrados e uma expressão malandra vem de mão dada com uma miúda de sorriso aberto com um coelho nos braços. A miúda faz festas obsessivas no coelho, embala-o e fala com ele. 
A mãe está absorvida a ver uma montra, e quando os vê chegar revira os olhos.

''O que é que tens aí? Não me digas que o teu pai te comprou o coelho!? Já tínhamos falado sobre isto! Quem é que vai tratar dele? Vai sobrar para mim! É sempre a mesma coisa, fazem tudo pelas minhas costas e eu acabo a ter o trabalho todo.Vais voltar para a loja e devolver isso agora mesmo!...''

''Calma, a Joana vai tratar do coelho, estivemos a combinar...''

Os dois afastam-se uns metros e continuam a conversa em surdina, ele suporta argumentos com as palmas das mãos, indeferidos pelos braços cruzados e sobrolho carregado dela. A miúda dos ténis azuis continua junto à montra a fazer festas ao coelho, olhar preso num horizonte que acaba na napa do banco da frente.

Cerca de quinze minutos depois o pai coloca o último saco no porta bagagens, e depois a viagem faz-se em silêncio. A miúda continua a fazer festas no coelho, agora a 72 rotações por minuto, o pai espera pelo semáforo verde com ar desinteressado e a mãe continua de braços cruzados.
Está trânsito, o carro arrasta-se alguns metros até ao carro da frente, num progresso incremental que parece um soluçar teimoso.

''Achas que assim ela vai aprender algumas regras? A fazeres tudo o que ela quer?''

''Se calhar tratar de um animal de estimação é capaz ensinar alguma responsabilidade à miúda, em vez de lhe enfiar lambadas no focinho por qualquer merdice que ela faça, normalíssima na idade dela.''

''Vai-lhe ensinar cá uma responsabilidade, tratar do coitado do bicho durante uma semana! Porque depois disso, vou eu ter que eu limpar cada cagada que o coelho faça, quando ela começar a não ligar nenhuma. E se for como de costume também sei com o que posso contar da tua parte. ''

''Eu fico sempre parvo com a tua capacidade de ler o futuro, e adivinhar o que vai acontecer. Arranjavas emprego com o professor Karamba, se alguém tivesse puto de interesse em saber que vilanagem é que a besta do teu marido vai fazer a seguir.''

''Não é preciso ler as cartas, basta lembrar-me da última vez que te pedi que chegasses a horas para irmos ver a minha mãe.''

''Não estou mesmo a ver como é que essa porra vem ao assunto.''

No banco traseiro, uma miúda de ténis azuis agarra-se a uma bola felpuda que tenta resistir a festas decididas e abraços ritmados. Mãos que apertam orelhas cor-de-rosa e feições inexpressivas, resistentes às dentadas ocasionais do bicho.

''Pois, o que eu sei é que tu ficas sempre como o gajo porreiro que faz as vontades todas à menina, e eu sou a burra de carga que tem que acarretar com o trabalho todo.''

''Olha, estou farto desta conversa. Eu farto-me de trabalhar a semana toda, para chegar ao fim de semana e aturar sempre a mesma merda de conversa, e para mais...''

''Ui, ui farta-se de trabalhar, coitado... Foi de trabalho que estavas bêbado a última vez que chegaste às três da manhã a casa? O teu bafo tinha cá um cheiro a ''trabalho'' dessa vez...!''

''Epa, ninguém te atura com essa conversa de vaca ressabiada...''

''Eu não acredito! Eu não acredito que acabaste de me chamar vaca à frente da menina! A sério, agora mostraste mesmo aquilo que és, és uma besta, não dá mesmo para falar contigo... És um animal, és um bêbado!''

O carro pára à beira do passeio e os adultos saem a vociferar.

O espaço público faz com que baixem a voz, e o tom da discussão desce um pouco. A acalmia relativa faz como que o pai se aperceba que se esqueceu das compras e da filha, que continua dentro do carro com o coelho no colo. Ele aproxima-se e abre a porta do carro.

''Joana, anda lá... o que aconteceu?

A resposta vem com uma nota de desespero na voz.

''Não sei, não sei, eu estava a abraçar o coelhinho e ele ficou parado... eu não fiz nada, eu não sei, pai o que aconteceu ao coelho, o que é que eu faço?... o que é que eu faço?''

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Nessa noite, quando a miúda do pijama cor de rosa finalmente adormece na cama dos pais, eles sussurram no escuro antes de adormecerem.

''Eu já tinha percebido que ela não estava bem, mas isto... A minha irmã tinha razão...''

''Como é que ela tinha razão?''

''Que a menina não tem regras e não tem noção. Isto agora foi demais. Ela não pode fazer tudo para chamar à atenção....''

''Hum...''

''Para a semana temos que a levar à psicóloga.''


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