Pataniscas Satânicas

Pataniscas Satânicas

segunda-feira, 13 de junho de 2011

A reunião

Uma parte muito significativa da vida de muitos funcionários de instituições, é passada em reuniões. Reuniões de apresentação de resultados, discussão de objectivos, estabelecimento de prioridades, afinamento de protocolos. Trata-se de uma actividade tão consumptiva de tempo que tem a sua linguagem própria, e as pessoas que conhecemos são diferentes, quando estão em reunião. Mais formais. Mais centradas nas suas competências chave, para promover sinergia.

A verdade é que as reuniões deviam servir para estimular a colaboração, mas na realidade servem para confrontar pontos de vista irredutíveis e para esgrimir argumentos sectários, acirrar rancores antigos encapotados, apontar o dedo a quem pretensamente errou, e, mais gratificante ainda, dizer, repetir e repisar: ''eu avisei, mas vocês não quiseram ouvir, sobre o que quer que seja''.
E toda a gente leva a mal se for interrompida.

A administrativa das manias, fala com a lentidão dos arrogantes, não arrastando, mas demorando a voz nas sílabas mais petulantes de um discurso técnico impenetrável, sobre o decreto que revoga a directiva. A sua expressividade concentra-se nas sobrancelhas altas e hirtas, que se juntam no meio, em duas rugas profundas. Tem a condescedência a fazer-lhe descair as palpebras, e fala com movimentos mínimos dos lábios.
Enquanto não está a corrigir o interlocutor em pormenores irrisórios e processuais, com esgares superiores e semi jocosos, olha para a caneta de tinta permanente pousada na pasta de cabedal, e brinca, de maneira contida, com os óculos de sol, ignorando activa e completamente os diálogos idiotas que se vão desenlolando à sua volta. A reunião divide-se no tempo que ela fala, e no tempo que ela tem que esperar para falar outra vez.

Directamente à frente da administrativa das manias está a gorda acelerada, que está revoltada. Quando a gorda acelerada não está a ler a revista Telenovelas, está revoltada com qualquer coisa. Ela pode não saber bem o que passa à sua volta, nem do que se está a falar, mas com ela ninguém faz farinha. A ela ninguém a engana. Reclama sempre em excesso, porque já aconteceu ela reclamar, e ser enganada na mesma. E ela pode ser estúpida, mas suspeita que vai acontecer outra vez.
De vez em quando, ameaça que se não for assim como diz, é capaz de meter atestado e não vir trabalhar. Toma e embrulha. Continua a rebater as parvoíces que tinham sido postas em consideração na intervenção anterior, com parvoíces de igual calibre, e que os outros abram os olhos, porque ela não é menos que ninguém. Quando a gorda acelerada está calada, os seus olhos e boca semi aberta fazem lembrar um peixe que se perdeu no próprio aquário.

No topo da mesa, está a bajuladora do feudo. Vêm à memória comparações fáceis com criaturas em baixo posto na cadeia alimentar. Anseia por fazer ouvir a sua voz melosa, que nunca diz nada remotamente polémico. As coisas estão bem como estão, toda a mudança é má, a não ser que devidamente sancionada pelo chefe. Tem no ADN o politicamente correcto, o menor denomindador comum. Sentimentalismo barato, psicologia de bolso. O BOM SENSO, e acima de tudo, coitadinhos dos coitadinhos.
A bajuladora do feudo cospe truísmos inofensivos, empolgada como se falasse de um púlpito, sobre os destinos da nação. Acompanha o chorrilho de parvoíces lapalissianas com olhares periódicos na direcção do chefe, em busca do mínimo sinal de desacordo. Caso este surja, a bajuladora do feudo começa a minguar e cala-se, ouvindo atentamente o chefe. Na próxima intervenção irá concordar avidamente com o chefe, justificando-se: ela queria dizer exactamente o que o chefe disse, mas reconhece que pode ter-se expressado mal. Reorientada, vai recuperar momento linear, com novas verdades evidentes e evidências gritantes, soprepostas de maneira redundante num discurso completamente vazio de conteúdo.
''Diga chefe? Como é que se resolve o quê, chefe?''

O chefe é um daqueles bonacheirões preguiçosos que confunde boa fé, com deixar toda a gente fazer o que lhe der na real ganha. Tem a barba por fazer, e pentar é um verbo que desconhe. Afinal, ele é o chefe. Sei que provavelmente a memória me trai, mas imagino-o com a camisa às riscas verdes e cinzentas que o Caldeira usava. Sempre. O chefe observa um horizonte imaginário com um expressão que trilha a linha fina entre a reflexão profunda e o coma profundo. Aparenta estar alheado, enquanto as galinhas cacarejam furiosamente à sua esquerda. Não o consigo culpar. O facto é que nenhuma galinha ouve o que as outras dizem, e as respostas de uma, nada têm que ver com as questões levantadas pela anterior.
Embora a realidade não o confirme, toda a postura do chefe transmite que ele coça os tomates languidamente, completamente negligente para meras questões terrenas. Tem os olhos pachorrentos de um São Bernardo que ficou fascinado com a morte da bezerra, e é mesmo possível medir a passagem do tempo na reunião, pelo grau de afundamento do chefe no seu cadeirão.
À medida que o chefe escorre na sua cadeira, torna-se claro o desejo do seu queixo descansar no plano que repousa em cima do globo às listas verdes e cinzentas que é a sua barriga de cerveja, e não consigo deixar de me perguntar se, desde o início, foi este o verdadeiro e último objectivo desta reunião.

1 comentário:

  1. Faço notar que aparte do chefe, todos os outros elementos da narrativa são do género feminino. Tirem daí as vossas conclusões.
    Encontrei o Caldeira no outro dia! Disse-lhe que ainda o recordava como professor, ele perguntou-me porquê, e eu respondi-lhe que era por causa dos calduços quando me enganava. Ele sorriu-me com bonomia, vestido com a mesma camisa de flanela de sempre, e respondeu "Pois era..."

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