Pataniscas Satânicas

Pataniscas Satânicas

domingo, 27 de maio de 2012

Coisas Horríveis I

O Avô João é um membro muito querido da Família Sousa. É aquele velhinho rechonchudo, amigável e afável que nas festas de anos dos netos lhes mete uma nota de 20 na mão e diz-lhes que é para irem comprar pastilhas elásticas, piscando-lhes o olho.
É aquele Avô que nas festas bebe sempre um bocadinho demais, ficando com a cara e o nariz vermelho, mas mesmo assim a única coisa que acontece é que ri-se mais alto que o habitual.

A Joana é uma das netas mais velhas, que acabou recentemente a faculdade e conseguiu, apesar da situação, arranjar um emprego estável. A Joana sempre foi uma das netas preferidas, e todos os natais fazia um cartão cheio de corações para o avô, mesmo até ser adolescente. Depois arranjou um namorado, o Pedro. Um rapaz decente que trabalhava na mesma empresa que ela, e começou a levá-lo às festas de Natal da Família, e o Avô João fazia-o sempre sentir-se bem vindo.

Um ano houve dois acontecimentos importantes. Ninguém na família é capaz de dizer ao certo qual aconteceu primeiro, mas toda a gente concorda que foram mais ou menos ao mesmo tempo.

O primeiro foi a Joana e o Pedro anunciarem que se iam casar, e que a Joana estava grávida.
O segundo foi a notícia chocante de que o Avô João tinha cancro testicular.

Ambas as notícias vieram mobilizar a família, que, como sempre, se disponibilizou para dar todo o apoio possível.

A gravidez da Joana acabou por ser seguida no mesmo hospital onde o Avô João foi fazer os seus tratamentos de quimio e radioterapia.

Com o passar dos meses, à medida que a barriga da Joana crescia, também crescia em tamanho o testículo esquerdo do Avô João, cada vez mais ingurgitado com uma massa tumoral de difícil controlo.
Apesar disso o Avô João manteve o seu bom-humor e boa disposição.

Quando a Joana soube pela primeira vez que ia ter uma menina, saiu da sala de ecografia directamente para o Hospital de Dia de Oncologia onde o Avô João estava a fazer a sua sessão de quimioterapia, para que ele fosse o primeiro a saber a notícia.

Mas com o passar do tempo o estado do Avô João inevitavelmente degradou-se, perdeu peso, perdeu o cabelo, perdeu muita da energia jovial que tinha.
Apesar disso a família ainda o conseguiu levar a casa para o Natal da Família, já a Joana estava a semanas de ter o seu parto.

O Avô João manteve-se sentado durante a maior parte do jantar, comeu pouco, perdera o apetite, e não bebeu, mas riu-se para tranquilizar os outros.

Na hora da troca das prendas, depois de todos terem oferecido as lembranças uns aos outros, o Avô João levantou-se solenemente e fez-se silêncio na sala.

"Minha querida neta" começou ele "Não sei se estarei cá quando a tua linda menina nascer, mas queria oferecer-te isto" e retira de detrás das costas um pequeno embrulho colorido.
De forma quase reverente, por sobre um silêncio expectante, o embrulho é passado de mão em mão até Joana, cujos olhos começam a ficar brilhantes de lágrimas.
Abre lentamente o embrulho, e tira de lá o que parece um casaquinho de bébé, tricotado à mão, um pouco tosco, feito de um tecido que ela não consegue identificar de imediato. Sentindo-se um pouco agoniada, observa que parecem fibras duras e encaracoladas, pretas e cinzentas que aparentemente foram duramente trabalhadas para fazerem o tecido que compõe o casaquinho.

"Durante a radioterapia" continuou o Avô João "foi-me caindo o pêlo púbico todo. Então fui recolhendo-o todo. Guardei-o durante meses, à medida que caía. Quando tinha suficiente, aprendi a tricotar com as enfermeiras do hospital.
"Durante meses fui tricotando, e isso ajudava-me a distrair-me das dores e das longas horas na quimioterapia, e mantive sempre em mente a nova vida que viria ao mundo.
"Fiz esse casaquinho para a tua bébé. Assim, bem depois de eu partir, estarei sempre com ela, de certa forma"

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