Um dia escuro, numa sala iluminada de luzes amareladas, ouvi um Professor falar sobre merda.
Merda com sangue.
Fiz o meu caminho por entre as ondas de multidão à saída no metro, e forcei a porta de vidro automática, depois de perceber que o cartão magnético tinha escolhido o dia para embirrar comigo. ''Porque é que estou sempre atrasado para tudo?''
Estava a chover o pior tipo de chuva miudinha. Aquele que molha parvos e espertos.
Acelerei o passo, por entre a multidão de Sete Rios, até dobrar a esquina. Continuei aos ziguezagues, abrigado de varanda em varanda. Os guarda chuvas não foram feitos para mim. Perdi dezenas, até perceber isso.
Finalmente vejo a fachada do Instituto Português de Oncologia! Cheguei, e o meu cérebro decide finalmente que desculpa balbuciar, na improbabilidade de alguém questionar porque é que passam 20 minutos depois do início da aula, e eu só cheguei agora. Depois da segunda aula, é difícil convencer alguém de que andamos perdidos à procura da sala, mas a minha imaginação tem limites às 8 e meia da manhã.
Chego ao piso da Cirurgia. Vou à secretária, e pergunto se sabe onde está o Dr. Ela aponta-me uma sala à esquerda, e finalmente chega o momento. Atravesso a porta a calcular o sítio onde me vou sentar entre os colegas, enquanto finjo que o facto do Dr. ter parado de falar, não tem nada a ver comigo. Sento-me, amorfo, com olhos de carneiro mal morto, para afastar as atenções dos olhares reprovadores. Passado tempo suficiente, ele continua a falar, e eu ouço atenta e interessadamente. Onde está a folha de ponto? Porra, onde está a folha de ponto? Os meus colegas não me retribuem os olhares, e perco-me entre expressões amorfas, de carneiros mal mortos.
''... e é por isso que hematoquézias não quer dizer nada. É um termo inespecífico. Podem ser fezes com coágulos, ou fezes em cor de tijolo... E por causa de variações na velocidade do trânsito, de dificuldade na estimativa do volume, é difícil dizer a origem, ou a causa da hemorragia.''
Eu lembrava-me disto. Medicamente falando, o aspecto das fezes de alguém com suspeita de hemorragia gastrointestinal, permite ter uma ideia da localização da hemorragia. A regra em que os livros de semiologia concordavam, é que sangramento do doudeno para cima, fazia um desgraçado defecar alcatrão, e abaixo disso, uma paleta de misturas e combinações da sangue com merda, até a hemorragia ter localização no recto, e aí o desgraçado defecava o que os médicos chamam, de maneira tranquilizadora, ''sangue vivo''.
''...e é por isso, que hematoquézias não servem para nada. Os doentes fazem colonoscopias que frequentemente estão normais. E existem causas de hemorragia acima do ângulo de treitz, que podem manifestar-se por hematoquézias, se a motilidade intestinal estiver particularmente acelerada. O que os livros dizem, na prática, pode ser muito diferente. A realidade das coisas não cabe em caixas de diagnósticos. A realidade é fluída e contínua. E é assim que devem ver os doentes com hematoquézias. Podem estar a sangrar de qualquer lado, em vários metros de intestino.''
Holds true. Os psiquiatras perceberam isto há mais tempo. Muitos medicamentos, desenvolvidos originalmente para uma doença mental/neurológica, mostraram-se muito úteis em várias outras doenças mentais. Os antipsicóticos podem ajudar nas depressões profundas. Alguns anticonvulsivantes são excelentes estabilizadores do humor, ao passo que outros controlam a dor neuropática. As benzodiazepinas foram feitas para dormir e acalmar, e algumas são excelentes relaxantes musculares. Os antidepressivos podem ser usados para tratar a ansiedade, a anorexia nervosa, e mesmo a ejaculação precoce.
Muitos sintomas são contínuos que podem aparecer com intensidades variáveis em doenças diferentes. As doenças são caixas onde nem toda a gente cabe. As equações de sintomas que estão na tampa de cada caixa, não são suficientes para traduzir todas as realidades que podem decorrer de estar doente. Prova disso é existirem diagnósticos-saco, onde se arruma o que não cabe em mais lado nenhum... fadiga crónica, fibromialgia, cistite intersticial, cólon irritável, síndrome da boca queimada, manifestações somatoformes, ou o curioso conceito: ''sintomas não explicáveis medicamente''. Não sabemos o que é... mas sabemos o que não é... arranjámos uns rótulos para a nossa ignorância, e repetimos placidamente: ''é dos nervos, vizinha, é dos nervos...''
Muitas vezes não é bem claro onde uma classificação acaba e a outra começa. 2+2 são 4... mas só quase sempre... Uma epigastralgia com 2 vómitos e febre é uma gastroenterite, até ser uma pneumonia. E a incerteza existe sempre... pode ser tolerável para alguns, mas certamente não para toda a gente.
Tudo o que podemos fazer é pensar, fundamentar as nossas escolhas, e agir de boa fé. Sabendo que podemos estar errados, e que estarmos errados, não decorre necessariamente de termos agido mal.
E saber que o papão não existe, e que a homeopatia é uma fraude.
Mas não digam estes dois últimos em voz alta.
Acho que me lembro dessas aulas. Não eram com um médico de cara comprida e cabelo esbranquiçado?
ResponderEliminarE sim, os doentes com sintomas inespecíficos, que se recusam a encaixar em qualquer um dos padrões que aprendemos.
Felizmente que na maior parte das vezes se um conjunto de sintomas não encaixa em nenhum dos padrões de doença que conhecemos, então de facto não é nenhuma doença grave.
Tendencialmente também são doentes com perturbações de personalidade mais ou menos vincadas.
Ou isso é uma impressão que lhes impomos, para justificar a nossa própria frustração de não conseguirmos encontrar o padrão certo?
Será que os médicos com óptimas capacidades de diagnóstico têm menos doentes com perturbações somatoformes?