Pataniscas Satânicas

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quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Como perguntar a alguém sobre a sua urina

Comunicar com os doentes é notoriamente difícil.

É difícil porque basicamente eu e os doentes falamos línguas diferentes. O doente sabe o que sente subjectivamente, e interpreta o que sente a partir do seu próprio ponto de vista com base na sua própria narrativa fluida, misturando sensações com emoções.

Eu falo em medicalês, que é uma linguagem exageradamente precisa, com cinco nomes diferentes para caracterizar cada sintoma, distinções precisas entre sinais e sintomas, com necessidade de provar ou negar pormenores que parecem irrelevantes, tudo numa linha de tempo muito exacta.

É difícil...

Desta vez consegui uma coisa rara, que foi uma conversa que tive com um amigo meu através de chat, e na qual, sem qualquer tipo de planeamento, este tipo de dificuldades se demonstraram de forma muito clara.



Só para terem um bocadinho de contexto, ele estava com queixas urinárias. Uma das coisas importantes a perceber nas infecções urinárias nos homens é a dificuldade de começar a urinar, que pode estar relacionado com patologia da próstata.
Se a próstata estiver aumentada de tamanho, como numa prostatite, bloqueia a uretra, e isso é sentido como dificuldade em começar a urinar porque é preciso primeiro vencer a pressão que a próstata aumentada provoca.

Ele é um tipo muito inteligente, de engenharia informática, que em qualquer outra situação consegue sempre explicar-se de forma extremamente clara.

Eu estava a perguntar-lhe acerca de uma data de sintomas, entre eles a dificuldade em iniciar a micção.

Eu: Tens dificuldade em começar a urinar?

Ele: Desde que comecei a usar o medicamento (Flavoxato, um medicamento para aliviar sintomas urinários) tenho alguma dificuldade.

Eu: E antes do medicamento?

Ele: Antes do medicamento não sentia tanto assim.

Eu: Isso quer dizer que sentias?

Ele: Não era significativo o suficiente para notar diferença.

Eu: Mas sentias ou não?

Ele: Era capaz de sentir alguma diferença mas não era uma dificuldade notória. Agora é notório. Tenho de contrair os abdominais.

Eu: Sentias mas não notavas? Não percebo.

Ele: Ok, quando vais urinar, começas imediatamente a urinar? Eu não. Demoro um bocado a começar, 1 segundo se tanto. Antes da medicação seria 1,5 segundos; não notava nada que me impedia e que necessitasse de contrair o que fosse.

Eu: Portanto, antes da medicação, o iniciar da micção era igual ao que sempre era?

Ele: Sim, simplesmente viria ao momento que viesse.

Eu: Pronto.

Ele: Demora um bocado mais mas nada de significativo

Eu: Demorava um bocado mais do que o normal?

Ele: Sim, os tais 0,5 segundos se tanto.

Eu: Mas isso não é o normal?

Ele: Normal seria 1 segundo. Como eu disse, a diferença não era significativa.

Eu: Mas havia uma diferença em relação ao normal ou não?

Ele: Havia diferença de tempo, mas não tinha de me contrair para urinar. A diferença de tempo era mínima, mas existia.

Eu: Então não era igual ao normal?

Ele: É igual ao normal mas demorava um bocado mais a sair.

Eu: Então era igual ou não?

Ele: Aaaaaaaah! Meu, eu sei o que tás a fazer, por isso vou-te responder à informática:
normal: standby de 1 segundo -> piss
com sintomas, sem medicação: standby de 1,5-2 segundos -> piss
com sinstomas, com medicação: standby de whatever -> contrair para mijar -> piss

Eu: Pronto! Então quando eu te perguntei se antes da medicação, se o iniciar da micção era igual ao normal, a resposta seria não. Correcto?

Ele: Exacto!

Eu: Pronto! Chiça que isto foi difícil!


Ainda neste momento, ao reler a conversa, tenho dificuldade em perceber porque é que foi tão difícil.

Na minha cabeça eu estava a perguntar uma coisa extremamente simples, uma pergunta de sim ou não.
Ele estava a tentar ajudar-me, a dar-me pormenores que me clarificassem o diálogo, mas na minha cabeça esses pormenores só tornavam a coisa mais ambígua ainda.
Eu não consegui fazê-lo perceber que só queria uma resposta de sim ou não.

Não estou a dizer que ele se expressou mal, não estou a dizer que eu fui picuinhas com as perguntas, estou a dizer que este tipo de comunicação é muito difícil de fazer bem.


Agora imaginem tentar arrancar informação medicamente relevante a uma velhinha de 78 anos, meio surda e a caminhar para a demência.


Deviam definitivamente pagar-me mais.


Ps: sim, sim, tenho o consentimento informado dele para postar esta conversa online!

2 comentários:

  1. :). E era uma mija.... o chato que é quando alguém diz que anda mais esquecido...

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    1. Às vezes dizem-me que sentem a cabeça vazia, e eu tenho dificuldade em não concordar.

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