Pataniscas Satânicas

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terça-feira, 6 de outubro de 2015

Iron Man, ou a construção de um Vilão

Há poucas coisas melhores do que um herói que se transforma num vilão

Vamos falar sobre isso.


Toda a gente adora o Underdog. Como não?
Identificamo-nos com ele, revemo-nos na sua luta e inevitavelmente torcemos por ele.

É fácil gostarmos do Herói. É para isso que ele lá está.

Um herói bem escrito pode tornar-se uma personagem verdadeiramente cativante e inspiradora, com fãs!


Mas um vilão? Um vilão serve essencialmente como antagonista do herói. Está lá muitas vezes só para motivar o conflito da história e para criar complicações ao percurso do herói.
Para isso, um vilão pode bem não ser mais do que um vilão da semana. Útil mas esquecível.

Mas quando um vilão é bem escrito, pode tornar-se ainda mais interessante e cativante do que um herói.

Eu gosto de vilões, e a Marvel tem alguns excelentes vilões.
Dois dos meus preferidos são o Wilson Fisk, que é um vilão do tipo The Chessmaster, e o Loki, que é um vilão do tipo Manipulative Bastard.



Mas o meu tipo preferido de vilão tem de ser o Fallen Hero. Sobretudo quando conhecemos a personagem enquanto ainda era um herói.

Depois de tanto investimento emocional no herói, depois de nos identificarmos com o herói, poucas coisas são mais emocionalmente intensas e cativantes do que ver esse herói transformar-se lentamente num vilão.

Poucas personagens são tão trágicas e fascinantes quanto o Darth Vader, antigo Jedi virado para o Lado Negro da Força, o Two-Face, antigo promotor público Harvey Dent, ou até Lúcifer, ex-arcanjo divino.

E é isso que a Marvel está a fazer com o Iron Man!

Estão, lentamente, a transformá-lo num vilão!

Não nos esqueçamos que para se tornar um vilão, Tony Stark tem primeiro que se transformar num herói.

Iron Man (2008)
No primeiro filme a personagem do Tony Stark é mostrada como uma criança crescida, arrogante, fanfarrona, petulante e orgulhosa.
É um vendedor de armas, um comerciante de morte! Um bilionário à custa de guerras e conflitos e morte.


Num acaso fatídico, o Tony Stark acaba por ser atacado e capturado por terroristas armados com as suas próprias armas, e um estilhaço de uma bomba produzida pela sua própria companhia aloja-se demasiado próximo do seu coração.

Para se salvar, Tony Stark usa o seu impressionante intelecto para inventar uma nova forma de energia numa caverna terrorista no meio do deserto, a partir de partes das suas próprias bombas.

Essa fonte de energia é poderosa o suficiente não só para alimentar um iman que impede que os estilhaços se afundem no seu coração, matando-o, mas também para fornecer energia a uma armadura robótica muito poderosa.
Ele depois usa essa armadura para lutar contra os terroristas e salvar-se.



Portanto, o Tony Stark é quase morto pelas armas que cria e isso motiva-o a proteger-se. Para isso transforma as suas próprias armas numa armadura que o salva.

Claro que depois ele sente-se compelido a usar a armadura para resolver problemas no mundo, o exército apercebe-se dele, o Big Bad constrói uma armadura para si, mas o Tony Stark consegue derrotá-lo.

É nesse processo de assumir responsabilidade pelo seu poder, que a personagem do Tony Stark aceita, nada relutantemente, o papel de Herói.


Iron Man 2 (2010)
No segundo filme, O Tony Stark parece estar na maior, gabando-se de ter "privatizado a paz mundial", e aproveitando tudo o que a armadura lhe traz de bom.


Mas na realidade a armadura, aquilo que ele criou a partir de ferramentas de destruição para lhe salvar a vida, está lentamente e literalmente a envenená-lo. É uma metáfora mais ou menos subtil para "o poder corrompe".


O Tony Stark transforma-se do espertalhão adorável para o fanfarrão detestável, e é ele que, pela sua própria arrogância e vaidade, causa todos os problemas.
Passa o tempo a humilhar o Justin Hammer que é o comerciante de armas mais inepto do mundo até sentir que tem de superar o Tony Stark, e é a gabarolice e auto-exposição do Tony Stark que no fim levam o Ivan Vanko a construir chicotes-laser e a tentar matar uma data de gente.



Ou seja, aquilo que o Tony Stark inicialmente criou com o intuito de proteger-se a si mesmo e aos outros está a matá-lo aos poucos e a corrompê-lo.
No fim, para se curar, tem de recorrer à figura do seu pai morto, que representava tudo o que ele detestava acerca do comércio de armas em primeiro lugar.

The Avengers (2012)
No The Avengers, num dos diálogos mais significativos do filme, o Tony Stark está a conversar com o Bruce Banner (que também tem dificuldade em lidar com a sua natureza dualística), e diz o seguinte:

Tony Stark: You know, I've got a cluster of shrapnel, trying every second to crawl its way into my heart.
[Stark points at the mini-arc reactor in his chest]
Tony Stark: This stops it. This little circle of light. It's part of me now, not just armor. It's a... terrible privilege.
Bruce Banner: But you can control it.
Tony Stark: Because I learned how.

O Tony Stark está a falar do pedaço de estilhaço, mas bem que podia estar a falar da dificuldade que tem em lidar com o poder destrutivo da arma que construiu, que ameaça constantemente penetrar o seu coração e corrompê-lo
Ele diz que a fonte de energia que construiu impede o estilhaço de o matar, e que ambos fazem parte dele. Um está a tentar matá-lo, o outro salva-lhe a vida, e ele criou ambos, e tem de manter controlo para não ser corrompido.

No fim do filme, o Tony Stark pega numa bomba nuclear e transporta-a através de um Buraco de Minhoca de onde estão a sair alienígenas. Tanto quanto ele sabe pode morrer, pode não voltar, mas mesmo assim decide que o sacrifício vale a pena para proteger os outros.


Este encontro imediato com a sua própria mortalidade, cortesia das habilidades que a armadura lhe confere, deixa Tony Stark mais uma vez inseguro e incerto.

Iron Man 3 (2013)
Durante o terceiro filme vemos que o controlo de que Tony se gabava está a enfraquecer. Vemo-lo com ansiedade e ataques de pânico. Há até um momento no qual a armadura o ataca e à Pepper Potts durante o sono, por causa dos pesadelos que o Tony está a ter.


Mais uma vez é o próprio Tony Stark a motivar os ataques do vilão, que desta vez não o afectam só a ele mas também as pessoas que lhe são queridas, e que ele não consegue proteger apesar da armadura.

A separação entre o Tony Stark e o Iron Man é acentuada neste filme. É mostrado lado a lado com a armadura, a arrastá-lá como um fardo literal e figurativo, e, no fim, a desenvencilhar-se sozinho sem ela.


No fim do filme o Tony Stark percebe que as armaduras  começam a ser uma ameaça às pessoas de quem gosta, e destrói a maior parte delas.
Decide também remover o pedaço de estilhaço no coração que ameaçava matá-lo, como se de um exorcismo se tratasse.


Portanto o Tony Stark, percebendo a influência negativa da armadura, sobretudo porque ameaça as pessoas de quem ele gosta, tenta libertar-se da sua influência, e aparentemente consegue.

Avengers: Age of Ultron (2015)
No Age of Ultron o Tony Stark é enfeitiçado e vê uma visão do futuro na qual os seus amigos e companheiros estão mortos, e acusam-no de não os ter salvo.


Para Tony isto é traumático e um momento transformador.
Uma das suas principais motivações foi sempre a sua protecção e das pessoas de quem gosta, e esta visão vai motivá-lo a recorrer de novo às armas e armadura para resolver o problema, apesar de saber da sua influência nefasta.

Tony assume esta decisão ao agarrar triunfantemente no Ceptro de Loki, que depois se descobre conter uma Infinity Gem. Em todos os filmes, até agora, os detentores das Infinity Gems são invariavelmente os vilões (Loki, Malekith e Ronan).

É significativo o pormenor que ele usa a luva do Iron Man para pegar no Ceptro.


O que vemos a seguir é, mais uma vez, o Tony Stark com a melhor das intenções a recorrer ao poder corrupto das armas/armadura para proteger toda a gente. 

"I see a suit of armour around the world" diz ele. 

O que ele inventa é um Homem de Ferro literal, sob a forma do Ultron, uma super-inteligência artificial modelada a partir da sua própria personalidade, com o objectivo de manter a paz global e proteger o planeta.


O Ultron torna-se quase imediatamente homicida, e o seu primeiro acto é matar o Jarvis. O seu segundo e último acto é tentar matar os Avengers e toda a humanidade. 

Um robot baseado na personalidade do Capitão América não teria esta compulsão homicida. O que é o facto de o Ultron ter essa compulsão homicida diz acerca do Tony Stark?

Pour esta altura, no entanto, o Tony Stark já não tem crítica acerca das suas acções, nem nunca admite que ter criado o Ultron tenha sido um erro.

"We're the mad scientists! We're monters! We gotta own it!"

Portanto temos um herói cujo poder está progressivamente a corromper as suas boas intenções e cujas acções são cada vez mais destrutivas. Em vez de criticar as suas acções, exulta-as e defende-as.

O que será que o Tony Stark vai fazer a seguir, com as melhores intenções? 


Claro que a personagem do Tony Stark não é ainda um vilão, e é improvável que se venha a tornar um Big Bad de capa preta, a cofiar o bigode e atar donzelas a carris de comboio. 

Mas provavelmente vai ser um antagonista importante com características de vilão. O mais certo é que no fim do Infinity Wars o Tony Stark vá morrer ao sacrificar-se pelos seus amigos, redimindo-se da sua vilanice e completando o círculo da sua narrativa. 

Para mim o mais fascinante é mesmo o facto de que a construção desta personagem já dura há 5 filmes e provavelmente vai continuar até ao fim da Fase 3. Não é de todo comum vermos tanto investimento cinematográfico no crescimento e desenvolvimento de uma única personagem.

De qualquer forma as expectativas são grandes para o Captain America: Civil War, onde provavelmente vamos ver se eu tenho razão ou não.


2 comentários:

  1. Acho que esta personagem é uma boa resposta à necessidade crescente das audiências de heróis complexos e com alguma profundidade de motivações. A narrativa preto e branco que abordaste num post anterior é adequada para algumas histórias, mas não é uma representação credível da realidade.

    Nós somos todos heróis na nossa própria narrativa... mas se não reconhece-mos que cometemos erros, somos cegos ou idiotas. Personagens que representam essa dualidade atraem-nos de maneira diferente do que os simples do-gooders dos contos de fadas.

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    1. O Paladino Goody Two-Shoes é pouco apelativo e aborrecido, razão pela qual há mais gente a gostar do Iron Man do que do Captain America.

      Acho que sobretudo o Tony Stark com a sua vontade de fazer o bem, mas quase sistematicamente a estragar tudo e depois a ser mal-interpretado, vai cada vez mais ter muita popularidade.

      Também é interessante que ele seja a personagem cheia de lábia, mas que ao mesmo tempo é o geek de ciência. Torna-o mais relacionável ao público alvo.

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