Existe este princípio ético que nos é inculcado durante todo o curso de medicina, que é o primum non nocere, que significa, basicamente "em primeiro lugar, não fazer mal".
É o princípio da não-maleficiência, de acordo com o qual a primeira preocupação para um médico será nunca prejudicar o seu doente.
Se pensarem bem no assunto, há qualquer coisa de perturbador nesta ideia.
Estão a dizer aos alunos de medicina, com muita veemência e muito ênfase, "Não façam mal aos doentes!!! Sobretudo não lhes façam mal! Preocupem-se sempre se não lhes estão a fazer mais mal que bem!"
Não deviam estar a dizer aos alunos de medicina: "Melhorem a vida dos vossos doentes! Ponham-nos melhores ainda do que estavam antes de ficarem doentes!"?
Eu sei que isto pode parecer idealista, mas consegue ser melhor que o realismo deprimente que é "Ao menos tentem não matar os vossos doentes!".
É como se um oficina de mecânicos, em vez de publicitar que "Pomos o seu carro como novo!", anunciasse orgulhosamente, com um sorriso e um piscar de olho, que "Prometemos que tentamos não destruir o seu carro!"
Que um mecânico não nos põe o carro pior do que estava está subentendido. A expectativa básica é que ele o conserte, o ideal é que o deixe melhor do que estava.
Anunciar, à partida, que não nos vão destruir o carro, não me parece uma boa estratégia publicitária.
É como os cartazes publicitários da Câmara Municipal de Lisboa que eu tenho visto pelas ruas ultimamente, que anunciam orgulhosamente que já não há esgotos não-tratados a desaguar directamente para o rio Tejo.
Ora se eu estivesse na Câmara Municipal de Lisboa e tivesse conseguido finalmente fazer com que não houvesse esgotos não-tratados a desaguar para o Tejo, o que eu definitivamente não fazia era anunciá-lo como se isso fosse o melhor do mundo! Calava-me muito bem caladinho com esperança que ninguém notasse que só agora é que isso tinha sido conseguido, e se alguém me perguntasse, respondia que não, nunca tinha havido esgotos não-tratados para o Tejo.
Se sentem necessidade de enfatizar Primum Non Nocere, isso dá a entender que acontece tantas, mas tantas vezes, um médico fazer mais mal que bem a um doente, que de facto se justifica fazer do Primum Non Nocere um dos pricípios éticos da medicina, e não o "Deixem o doente ainda melhor do que estava".
E isto não é especulação...
Para não fazer mal aos meus doentes, encontro-me na net, em vez de estar a trabalhar. acho que conta como boa acção, hoje.
ResponderEliminarfaz tudo parte de uma lógica que um superior meu tenta desenvolver que é muito divertida.
eu explico:
eu tenho o hábito de dizer que as pessoas podem ter doenças exóticas. E isso é mal visto.
Sexta disse que uma mulher podia ter uma dissecção aótica. E fui desmentido com veemência.
Na semana passada disse que um senhor podia ter diabetes insipidus, e fui desmentido com a mesma força, e sem bons fundamentos. Como se estivesse a inventar coisas... Agora cada vez que digo qualquer coisa, parece que estou a inventar. e com um tom de voz: ''lá está este palhaço a inventar doenças.''
Para que é que me estiveram a contar que estas coisas existem, então? Para que é que andei a ler milhares de páginas chatas sobre elas?
Então, de há uns dias para cá, um doutor têm-me ficado com os doentes mais complicados. Eu acho que ele pensa que me está a castigar por inventar coisas. Eu chamo-lhe férias remuneradas.
Sim, estou de facto a recostar-me para trás com as mãos na nuca.
Também já me aconteceu ter o comentário "Já estás a inventar doenças à senhora!".
ResponderEliminarNão vou deixar no entanto de o fazer porque quero ver se consigo voltar a fazer passar uma como a sensibilidade diferencial dos bastonetes à hipóxia!
os bastonetes do senhor... tadinhos. já enganam muita gente.
ResponderEliminaracho que a comparação com o mecânico funciona a vários níveis. Quando acabar de fazer as perguntas dos cócós, das álgias e das dispneias, antes do exame objectivo, tenho que começar a dizer:
'' então sr josé, vamos lá ver como é que está debaixo do capot.'', enquanto levanto os cobertores ao velho. é muito parvo.
Nasce (desenterra-se...) toda uma geração de piadas secas profissionais.
acredites ou não, tou com saudades do Helder Gonçalves.
Eles vão lamentar não lhe terem dado atenção, quando os Lagostins de água doce tomarem conta disto tudo!
Sua intenção é boa. Mas o "primum non nocere" significa que o médico caia em si não achando que é senhor da vida e da morte do paciente. Quem somos nós médicos para fazermos algo quase mágico pela vida dessas pessoas. Somos apenas seres humanos que tentamos cooperar para ajudar. Logicamente está implícito a melhora na qualidade de vida dos pacientes. Mas, quando tudo falha, quendo nos vemos prostrados ante a nossa pequenês e impotência, surge a frase: "primum non nocere".
ResponderEliminarMuito Lúcido. Ao menos um escreveu alguma coisa que se aproveite. Raros foram os médicos que não tenham me mostrado nesse ou naquele momento, um certo ar de "semi-deus" Se todos estivessem sempre imbuídos do nexo deste "dito".
EliminarÉ uma interpretação errônea esta... Complemente sua leitura no que concerne a ética médica. Se busar a fundo esta citação, que perdura até hoje como tradição no juramento médico, vem de uma época ainda obscura na medicina mas que é importante ser levada em conta nos dias atuais, naquele primórdio da prática médica o desconhecimento da origem das doenças e ainda a imperícia principalmente no campo cirúrgico, muitas vezes acabava "causando mais mal do que o bem" ao paciente, e então a questão sempre esteve presente como ensinamento, princípio e ética na medicina. Afinal de contas, estamos lhe dando com vidas humanas, mães, pais e filhos... E assim temos que sempre, no princípio de tudo, estar atento nos riscos e em possível imperícia da nossa parte! Primum no Nocere! Não estamos lhe dando com carros, ou algum objeto que temos a chance e o privilégio do erro e da tentativa, temos que ter certeza do que estamos fazendo com nosso paciente antes de qualquer coisa... Espero ter contribuído
ResponderEliminarAh, finalmente uma resposta muito bem considerada, ponderada, cheia de sabedoria e que passa completamente ao lado do ponto que eu estava a tentar fazer.
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