Pataniscas Satânicas

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domingo, 14 de fevereiro de 2016

Agent Carter e a Marvel no Feminino

Sexismo nas bandas desenhadas de super-heróis? As novas personagens femininas da Marvel? Eu a enfiar-me num buraco do qual não me consigo desenvencilhar?

Vamos falar sobre isso.


Já falei várias vezes sobre como a relacionabilidade (relatability) de uma personagem é importante para que nos importemos com ela.

Muito basicamente, se eu vejo uma personagem parecida a mim, a fazer coisas que eu faço, ou a dizer coisas que eu diria ou pensaria, identifico-me mais com ela. Se me identifico com ela começo a importar-me mais com o que lhe acontece, e o meu investimento emocional na personagem e na história aumenta.


Isto gera uma espécie de ciclo vicioso:

O público vai sempre gostar mais das personagens com as quais se relaciona mais (por isso é que toda a gente adora o Underdog), o que significa que os autores lhes vão dar personagens com quem se relacionem de maneira a pô-los a consumir mais dessa personagem, o que por sua vez aumenta e cimenta a base de fãs, o que leva a que os autores fiquem presos a esse tipo de personagens porque a sua base de consumidores foi seleccionada com base nisso.

A banda-desenhada americana nasceu na década de '30, altura em que o sexismo era transversal.

Eu ia agora começar a falar sobre o papel das mulheres na sociedade e a história das mulheres na banda-desenhada, mas 2 minutos de investigação acerca do assunto rapidamente me mostraram o quão pouco equipado eu estou para sequer iniciar essa discussão, portanto vamos saltar à frente para eu não me embaraçar mais do que o costume.


Muito basicamente, e mais recentemente, a maior parte do cinema e televisão de super-heróis é dirigido a um público masculino, e existe o estereótipo de que não só as mulheres não têm grande interesse neste género (o que é falso) o que faz com que filmes e televisão com protagonistas femininas não dão dinheiro (o que também é falso).

Mas honestamente eu até acredito que o público feminino não se sinta tão interessado e entusiasmado com filmes e séries de super-heróis como público masculino.

Vejam os Avengers, por exemplo.

Temos uma data de personagens masculinas espectaculares, cada uma com as suas características próprias (há o tipo que é forte, o tipo que é corajoso, o tipo que é espertalhão...) e perdida ali no meio a Black Widow, cuja única característica distintiva é ser uma mulher.


É uma aplicação perfeita do Príncípio da Smurfette, no qual é necessário incluir uma personagem feminina só para reduzir os tons homo-eróticos que uma equipa de super-heróis composta exclusivamente por homens poderia suscitar.

Isto não significa que a Marvel seja sexista, significa apenas que a Marvel conhece o seu público alvo (os homens) e está a dar a esse público o que eles querem.


Infelizmente, estas representações de personagens femininas acabam por ser pouco interessantes para o público feminino, o que faz todo o sentido.

Como eu disse ao início, a relacionabilidade é das coisas mais importantes para nos entusiasmarmos com uma personagem, e se houvessem poucas personagens masculinas, e as que houvessem fossem aborrecidas e unidimensionais, eu provavelmente também não via tanto cinema e séries de super-heróis.

Felizmente as coisas estão a mudar, os grandes Estúdios e Editoras começam a perceber que existem pelo menos tantas mulheres a gostar destas coisas ridículas quanto homens, e que são um público no qual vale a pena investir.

Os Estúdios Marvel estão a abrir portas nesse sentido.

Em Agents of S.H.I.E.L.D. quatro das personagens principais são femininas, extremamente bad-ass e construídas para apelar a públicos diferentes (ou seja não são cópias umas das outras).



Jessica Jones é toda uma exploração da violência contra as mulheres, abordando temas como a violação, a quebra de consentimento, direito ao aborto e violência doméstica.


Há todo um conjunto enorme de personagens femininas no MCU até agora, e obviamente que não vou falar de todas, mas fica aqui uma amostra, só para perceberem que não são poucas.



Agent Carter vai neste momento a meio da sua segunda temporada e a fazer uma das mais inteligentes desconstruções dos tropes das mulheres no cinema que eu já vi.

A série Agent Carter passa-se nos anos '40 do pós-guerra, e segue as aventuras de Peggy Carter uma super-agente-espiã que luta contra organizações criminosas geralmente associadas a super-poderes ou armas super-poderosas.


Num dos mais recentes episódios é-nos mostrado o passado da protagonista, Peggy Carter, e da sua principal antagonista, Whitney Frost.

Vemos que a protagonista, Peggy Carter era uma menina enérgica que gostava de brincar aos cavaleiros e dragões, mas assumindo ela própria a personagem do Herói que salva a Princesa do Dragão.
Ao meter-se numa bulha com o irmão mais velho, vemos que a sua mãe a censura, dizendo que ela tem de se começar a comportar como uma mulher, deixando implícito que ser uma heroína forte não é algo que as mulheres possam ou devam fazer.



Vemos mais tarde que Peggy assumiu verdadeiramente esse papel que a sua mãe e a sociedade querem para ela, estando noiva e recusando, juntamente com o noivo, uma proposta para pertencer à Special Operations Executive para ser uma espia e infiltrar-se em território inimigo, alegando que Peggy não seria é capaz de fazer esse tipo de trabalho.

O seu irmão, por outro lado, que conhece o seu lado mais aventuroso, critica-a por estar a deixar-se limitar, e diz-lhe para ser fiel a si mesma e para não duvidar das suas verdadeiras capacidades.

Só quando recebe notícia de que o seu irmão morreu na guerra é que Peggy Carter decide aceitar o trabalho na SOE. É uma excelente origin story, mostrando um crescimento extremamente interessante e que fundamenta perfeitamente bem a força e determinação da Peggy Carter, a Heroína que nos é apresentada na série.


O mesmo episódio mostra-nos também a origin-story da vilã Whitney Frost.

Whitney Frost é uma actriz de cinema de Hollywood que já está em fim de carreira. Descobrimos rapidamente que para além de ser actriz de cinema, Whitney Frost é uma cientista genial que desenvolveu uma nova forma de energia exageradamente poderosa chamada Zero Matter.

Whitney Frost é, claramente, uma personagem inspirada em Hedy Lamarr.


Vemos então que Whitney Frost era uma menina extremamente inteligente, capaz de consertar rádios com aparentemente 7 anos, cuja mãe se colocava numa posição de subserviência sexual para com o senhorio em troco de dinheiro. A mãe de Whitney em vez de a congratular por ela ter conseguido arranjar um rádio, diz-lhe para sorrir e ser querida para com o senhorio.

Já mais crescida, Whitney testemunha a sua mãe a ser rejeitada pelo senhorio, simplesmente porque está a envelhecer, e a ser trocada por uma mulher mais nova. Mais uma vez, em vez de estimular Whitney a prosseguir com os seus estudos científicos apesar de ter sido rejeitada de uma faculdade de ciências, diz-lhe que a única coisa que lhe dá valor é o seu aspecto físico, e que as suas capacidades intelectuais não valem nada.

Isto justifica perfeitamente que, já crescida e a tentar a sua sorte em Hollywood, Whitney aceite os avanços oleoso de um caçador de talentos que a manda sorrir, e que lhe diz que com a sua cara ela pode ir longe.

É a origin story perfeita para uma vilã manipuladora que enlouquece um bocado quando começa a ver a sua fama a desaparecer porque está a envelhecer


Portanto,

Começamos com duas personagens femininas a quem a sociedade diz que devem limitar-se aos papéis impostos. Uma desafia essas imposições e vem a transformar-se numa heroína, a outra cede essas limitações e transforma-se numa vilã.

A Marvel, depois de conquistar todo o seu público masculino com as personagens do Tony Stark e Steve Rogers, está claramente a tentar apelar ao público feminino.

Mas em vez de o fazer recorrendo às tramas romântico-cómicas do costume, que são pelo menos tão sexistas como tudo o resto que por aí anda, está a fazê-lo construindo personagens femininas que são complexas e profundas, com motivações fortes e agência nas suas acções, com quem o público feminino se possa identificar.


O mais brilhante é que este desenvolvimento das personagens ocorre exactamente por causa do sexismo e da forma como as personagens o enfrentaram, o que as torna ainda mais relacionáveis ao público feminino.
Simultâneamente, a Marvel consegue construir uma análise e comentário inteligente acerca do sexismo, informado pelo que actualmente compreendemos acerca do assunto.

Ao mesmo tempo, dá a esta temporada o que eu percebo agora que faltou na primeira, que é um vilão apelativo. Whitney Frost é a melhor vilã que Peggy Carter podia ter, porque é um reflexo corrompido da heroína. Uma Némesis!

É por causa destas coisas que eu tenho grandes esperanças na personagem da Carol Danvers no filme da Captain Marvel que já está anunciado para 2019.


2 comentários:

  1. Outro nicho nao explorado, é o dos jogos de videos para publico feminino. Ha imensas mulheres a jogar candy crush neste momento, que se tivessem um bom rpg dirigido para elas, eram capazes de largar os angry birds um bocado.

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    1. Os RPGs tem um problema muito particular no que toca a este tema.

      Os RPGs funcionam como power-trips para os jogadores, permitindo-lhes criar um avatar de si mesmos que tenha capacidades e vá em aventuras fantasiosas.

      Se por um lado permitem na maior parte das vezes que o jogador escolha o sexo da sua personagem (e isso é bom porque permite que o jogador se identifique mais com a sua personagem), essa liberdade limita uma grande parte das temáticas narrativas que estariam dependentes do sexo da personagem.

      Há jogos que tentam levar isto em conta, permitindo que o sexo da personagem do jogador seja relevante nas interacções com as personagens secundárias (Mass Effect, Dragon Age), mas na maior parte das vezes isto só leva a intrigas românticas reminiscentes de dating-sims que são exactamente o tipo de intrigas que criticamos nos filmes habitualmente dirigidos a mulheres.

      Os jogos que simplesmente ignoram a escolha de sexo do jogador (Skyrim, Fallout) teriam essencialmente de ser dois jogos num de maneira a terem uma narrativa dirigida ao público masculino e outra ao feminino.

      Dito isto tudo, eu percebo pouco deste assunto e possivelmente até existem maneiras extremamente inteligentes de escrever RPGs interessantes dirigidos a um público feminino.
      Essas maneiras provavelmente precisariam de ser inventadas por mulheres, que continuam a ser raras na indústria.

      É uma pescadinha de rabo na boca.

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