Abro os olhos, fecho os olhos.
Gosto de estar de olhos fechados. Eles chateiam-me menos.
Houve um tempo em que pensei que fechar os olhos ia ser a única maneira de distinguir o que era real do que eram fantasmas. Demorei pouco a perceber que a realidade perdeu substância suficiente para desistir de confiar nos meus sentidos. Demorei menos a perceber que não interessa. Para todos os propósitos práticos, a minha opinião sobre o que é real interessa muito pouco.
Também não é como se andasse a guiar autocarros. A realidade não precisa de substância quando é vista da altura conferida por uma cadeira de rodas.
Há um fantasma de bata branca a debitar as perguntas enfastiadas do costume:
''Em que ano estamos, sr António?'' ... ''Sabe quem é esta senhora?'' ...
''Ele hoje não lhe apetece dizer nada... ''
Diz a vaca que empurra a cadeira de rodas, a fingir que está preocupada. Sempre preocupada com as aparências. Vaca. Se eu me conseguisse mexer...
''Em que ano estamos, sr António?''
Será que este gajo se enxerga? Aqui a perguntar o ano em que estamos, com um calendário enorme em cima da mesa. E eu é que estou maluco.... se este otário quer fingir que é útil, pode esvaziar-me a algália, que o mijo está a entornar-se nas calças.
''Dona Júlia, acha que consegue trazer o seu marido à urgência na sexta feira?''
A única coisa que me faz parar de tremer a esta hora da manhã são dois dedos de bagaço. Está na segunda gaveta, lembro-me agora... Onde... ? Onde é que está a chave?
''Ele está a delirar outra vez...''
A vaca começou a chorar lágrimas de crocodilo... Um animal exótico, sem dúvida. Quando me deixei de conseguir mexer, a vaca demorou 5 minutos a enfiar-me numa cama automática, enquanto ela se enfiava na cama do vizinho da frente.... Deve ser para ganhar energia para empurrar o mono durante o dia.
As noites são piores. Às duas da manhã, ela liga a telefonia para não me deixar dormir.
''...Angola é nossa, é dos portugueses!''
Ela sabe que cada noite que não durmo, enlouqueço mais um bocado. Ao princípio irritava-me, mas agora canto e dou gargalhadas para espantar a bicharada. Para a vaca saber que vai ter que me envenenar, e quando o fizer, a vizinhança toda vai saber! Que se danem as aparências.
Não é como se ela não tentasse. Da última vez que recusei os comprimidos, a sopa sabia a veneno. Em menos de nada acordei no meio da selva, cheio de lama, com uma G3 na mão. Ao meu lado estava o soldado Joaquim e o Alferes Costa. Como é que eles estavam vivos não faço ideia. Não lhes perguntei porque tínhamos que continuar a disparar. Ao princípio mijei-me todo, mas depois fiquei feliz. Porra, conseguia mexer-me! Consigo mexer-me ao fim de não sei quanto tempo, e tudo o que posso fazer é matar pretos.
A vida é estranha...
''...Não quero meter o meu marido num lar. Ele cuidou de mim toda a vida...''
''Dona Júlia, você é que sabe da sua vida. Mas veja lá se não precisa de ajuda.''
''O que me custa é quando ele começa a gritar à frente de outras pessoas...''
''Voltou a acusá-la à em público?''
''....''
''Isso é a doença a falar. A demência faz com que os medos dele se tornem realidade.''
'' Eu sei. Mas não sei se aguento outra dessas... O que é que eu posso fazer...?''
''De-lhe mais um destes. E se ele estiver agitado, dissolva-lhe umas gotas destas na sopa.''
Jesus fucking christ...
ResponderEliminarA demência é difícil de explicar. Já tentei várias vezes, aos outros e a mim mesmo.
Explicar que a consciência começa a ficar desfiada, gasta, que surgem erros.
É difícil explicar o olhar de confusão e surpresa que surge na cara do idoso à nossa frente quando lhe pedimos para desenhar um relógio, e ele descobre, como se fosse a primeira vez, que não consegue.
Tu conseguiste.
Bem conseguido, lhano e holístico.
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