Eu já tinha visto o Amadeus várias vezes, e por acaso tinha-o revisto há alguns meses, portanto foi com bastante curiosidade que fui ver a peça original, escrita por Peter Schaffer no Teatro Dona Maria II.
A peça conta a história de Salieri e de Mozart e da sua rivalidade. Salieri é o compositor da corte cuja única coisa que sempre quis foi a capacidade de compôr música para louvar a Deus!
No entanto, com a chegada de Mozart, Salieri reconhece nele o génio e a música sublime que ele próprio nunca conseguiu ter. Aquilo que no início começa por ser mero ciúme e inveja, rapidamente se torna numa obsessão louca que leva Salieri a planear a destruição de Mozart e, por intermédio dele, vingar-se de Deus.
Eu não costumo ir ao Teatro, portanto esta opinião vale ao que vale.
Diogo Infante e Ivo Canelas estão os dois muito bem como Salieri e Mozart, respectivamente. Ivo Canelas consegue tornar Mozart numa personagem verdadeiramente irritante e quase detestável, como é suposto ser. Mozart, nesta peça é uma criatura infantilóide e obscena, que seria odiável em todos os aspectos não fosse o de compôr música divinal. É exactamente essa contradição, e a convicção de que Deus escolheu semelhante criatura e não Salieri para receptáculo da inspiração divina que leva Salieri a mover-se contra Mozart. Diogo Infante por sua vez, consegue com grante talento mostrar uma personagem levada à loucura, obcecada e em última instância cruelmente fria e propositada.
Os cenários são simples mas extremamente bem utilizados e a pouca música que existe são peças de Mozart, portanto por aí era impossível falhar.
O enredo da peça está bem construído, levando a um clímax que é extremamente satisfatório e inteligente.
No geral, o filme é superior à peça de teatro. Assumo que seja uma comparação injusta, mas é a única que sou capaz de fazer. Apesar disso, a peça de teatro permite os monólogos e os artifícios teatrais que no cinema pareceriam exagerados.
The Catcher in the Rye é um romance americano escrito por J.D. Salinger em 1951. Estava farto de ver referências a este livro por todo o lado (em filmes, na internet, em outros livros) por isso decidi lê-lo.
O livro segue a história de Holden Caulfield, um adolescente de 16 anos, que, quando começa a história, acabou de ser expulso do colégio interno onde estava matriculado. Tem algumas discussões com os seus colegas, um típico desportista e um típico nerd, e depois vai para Nova Iorque. Quando chega a Nova Iorque, não querendo confrontar-se com os seus pais antes do tempo, decide passar 4 dias a passear pela cidade. Durante esse tempo tem várias experiências com outras peronsagens típicas da cidade (taxistas, bartenders, músicos, prostitutas), e acaba por encontrar a sua irmã de 12 anos.
Os encontros são na sua maioria inconsequentes. Mas existem para relevar a personalidade de Holden.
Holden é um adolescente típico: impulsivo, parvo, inconsequente, irresponsável, mentiroso, parvo, angustiado, e obcecado com a hipocrisia (sim, eu sei que disse parvo duas vezes, leiam o livro e vejam se eu não tenho razão).
Holden mostra-se extremamente revoltado com o mundo, com o aqueles que ele apelida de "phonies". Adultos que perderam a genuinidade e fazem as coisas meramente porque socialmente lhes fica bem fazê-las. Holden rejeita esta atitude violentamente, mas conversamente acaba por não fazer nada de genuíno ele mesmo. Simplesmente não faz nada.
O que me impressionou com a personagem foi o facto de eu não gostar dela. Holden Caulfield é um adolescente da pior espécie. É irritante, beligerante, mal-educado, rude, incapaz de aprender. Não é uma personagem gostável. Não consegui desenvolver simpatia por esta personagem, não consegui gostar dela.
Mas a empatia...
A determinada altura a meio do livro apercebi-me de quão deprimida estava a personagem! Holden está profundamente deprimido, angustiado e perdido. Não sabe para onde se virar, não sabe o que quer, sente-se profundamente desinserido do mundo onde habita. A única personagem com quem consegue obter qualquer tipo de relação válida é com a irmã de 12 anos.
A determinada altura estava convencido que ele se ia matar no fim do livro.
É o livro que eu li até hoje que melhor representa a adolescência.
É um livro extremamente pesado, e não me surpreende que nos seus 60 anos de publicação, tenha sido dos livros mais contestados na literatura americana, tendo sido instituído e retirado dos livros de leitura na escola várias vezes.
“O Buddha Eden Garden é um espaço com cerca de 35 hectares, idealizado e concebido pelo Comendador José Berardo, em resposta à destruição dos Budas Gigantes de Bamyan, naquele que foi, um dos maiores actos de barbárie cultural, apagando da memória obras primas, do período tardio da Arte de Gandhara. Em 2001, profundamente chocado com a atitude do Governo Talibã, que destruiu, intencionalmente, monumentos únicos do Património da Humanidade, o Comendador Berardo deu início, a mais um, dos seus sonhos, a construção deste extenso jardim oriental. Prestando, de certo modo, homenagem aos colossais Budas esculpidos na rocha do vale de Bamyan, no centro do Afeganistão, e que durante séculos foram referências culturais e espirituais. Pretende-se, que o Buddha Eden Garden seja um lugar reconciliação. Sem nenhuma tendência religiosa, abrimos as portas, a todas as pessoas, independentemente, da religião, etnia, nacionalidade, sexo, idade, condição cultural ou social, convidando à união, comunicação e meditação, como forma de redescobrir a felicidade. Ambicionamos, assim, percorrer o caminho contrário à destruição do ser humano e disseminar a cultura da paz. Esta é uma instituição cultural sem fins lucrativos e ao serviço da comunidade nacional e internacional, que tem como missão sensibilizar o visitante para o conhecimento interior, através do seu jardim em diálogo com um vasto património escultórico, vocacionado para a meditação e promoção da interacção social e cultural, conforme os princípios da solidariedade e da dignidade humana. Sendo o Buddha Eden Garden um espaço de livre acesso, solicitamos uma doação, dentro das suas possibilidades, para nos ajudar a manter este sítio de tranquilidade e para, que possamos continuar a facultar entradas gratuitas a todos aqueles, que nos procuram aspirando a paz, força e luz.” O Jardim do Eden por visitado muitos dos meus amigos e foi-me referido como sendo um lugar magnifico, que valia a pena visitar. A visita ficou prometida e a promessa cumprida no passado domingo. Poderia, sem dúvida, discorrer numa grande critica ao local, mas acho que numa simples frase consigo resumir toda a experiência: “Apresentou-se como um espaço bastante amplo com cópias baratas de Budas em todo o lado.” Os Budas estavam bastante dispersos pelo Jardim, sendo constituidos por blocos de gesso mal disfarçado sem qualquer tipo de referencia aos Budas originais. Senti uma dor dilacerante enquanto percorria todo o Jardim, que se tornou excruciante quando me deparei com uma reprodução de uma fogueira (para matar bruxas?) e do Stoneage. Acham que isto foi mau? Agora somem os maravilhosos comentários de pessoas indignadas por os “Soldados de Terracota” já estarem todos partidos ali ou dizerem que estes representam mártires europeus. Acho que na realidade nos deviamos era sentir mais indignados por se ter construído aquilo. No fim, só me senti feliz, porque se tivesse pago entrada ter-me-ia sentido verdadeiramente enganada. PS: Eu sei que as fotos são muito giras, mas acreditem as máquinas fazem maravilhas.
porque vou escrever acerca de programas de culinária.
"Programas de culinária?!" bradam os leitores,
"eu venho ao Pataniscas Satânicas para ler pequenos textos intelectuais, que não sejam pretensiosos mas que tenham um humor mordaz e acutilante, bem como insights inteligentes acerca da condição humana e do estado actual do mundo, sem nunca perder vista da cultura popular, e esperar, esperar sempre, que um dia possa ser abençoado com a História dos Macacos!" gritam, quase em lágrimas e com um ar de júbilo misturado com tristeza, as nossas multidões de leitores.
"e agora vem o Gui, essa fonte de inspiração e informação relevante, que nunca falha em demonstrar a sua superioridade cultural e intelectual sem no entanto parecer snob ou elitista e sem sequer deixar transparecer que na realidade pensa que a vasta maioria das pessoas tem o QI igual ao número que calça, falar-nos de programas de culinária?!" clamam as hordas de leitores.
Calma, caros leitores.
Eu gosto de cozinhar. Sempre gostei. Gosto imenso de comida, de comer e de fazer comida. Dá-me gosto cozinhar para os amigos.
E, sempre, desde que me lembro, que gosto de programas de culinária.
Lembro-me de ter 6 anos, e de ver na televisão, na RTP1, nos dias de semana de manhã, um programa de culinária que dava, e de adorar aquilo. Se calhar aquilo já apelava à minha mente obsessiva, que procurava ardentemente coisas com uma estrutura própria e reconhecível.
Um programa de culinária é como um bom filme de assaltos. Sabemos à partida que vai ser satisfatório. Vi vários ao longo dos anos, sendo que a maioria eram no já defunto People and Arts. Havia um gajo muito homossexual, um britânico muito divertido e snob. Eram programas de culinária que viviam tanto à custa das receitas em si, como da personalidade e entusiasmo do cozinheiro que as preparava.
Mas havia um que eu adorava realmente, que era o Two Fat Ladies. Um programa em que duas mulheres muito gordas e divertidas cozinhavam durante meia hora e gozavam uma com a outra. Era extremamente divertido e satisfatório.
Infelizmente acabou porque uma delas teve cancro do pulmão e morreu.
Mas aonde eu estou a tentar chegar é que com o advento do Youtube, o género do programa de culinária com cozinheiros interessantes revitalizou-se, com uma data de gente a tentar fazer coisas progressivamente mais estranhas.
Começo por apresentar o Epic Meal Time. Neste, uma data de gajos extremamente épicos e bad-ass, levam a culinária a níveis calóricos nunca antes imaginados, e tentam basicamente superar cada episódio anterior.
Nunca mais vão olhar para bacon da mesma maneira.
Depois temos um dos meus recentes preferidos, o Regular Ordinary Swedish Meal Time, que me diverte particularmente, não porque é apresentado por um sueco extremamente zangado, mas porque sugere que, contrariamente ao Epic Meal Time que apresenta refeições normais de uma forma épica, todas as refeições suecas já são tão épicas que não vale a pena chamar a atenção para isso.
É apresentado em sweglish, e copiosas quantidades de maionese são ingeridas.
Depois outro muito engradaçado é o My Drunk Kitchen, no qual uma rapariga muito geek (e toda a gente sabe que as raparigas geeks são as melhores raparigas do mundo) se embebeda e cozinha. Hilarity ensues, porque é sempre divertido ver pessoas bêbedas a tentarem fazer tarefas complexas.
Sempre considerei o Paul Simon como sendo um dos grandes compositores da música americana contemporânea. Poucos outros compositores conseguiram simultâneamente compor uma tão grande quantidade de músicas de tal qualidade, com melodias verdadeiramente bonitas, bem como tocar temáticas invulgares, introspectivas e filosóficas.
Recentemente tenho ouvido com alguma frequência a canção America, que era a 3ª faixa do album Bookends de 1968, da dupla Simon and Garfunkel
O Bookends pretendia ser um album conceptual, na peugada de albuns como o Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, que seguisse o percurso da vida, da infância até à velhice.
America é uma canção sobre a adolescência. Em 1968 a américa estava a passar a fase do Flower Power, o movimento hippie começava a dar mostras de ter falhado, 1969 seria o ano mais sangrento da guerra do Vietnam, as drogas começavam a perder a imagem de emancipadoras da mente para começarem a matar celebridades, e toda a sensação de optimismo que se tinha gerado no início dos anos '60 começava a dissipar-se.
Os jovens já não se reviam no surf-rock, já não dançavam ao som do Chuck Berry, do Buddy Holly ou do Ritchie Valens, já não queriam o Let me Hold Your Hand dos Beatles.
Os adolescentes sentiam-se perdidos numa América que começava a perder outra vez a identidade, com uma verdadeira quebra de gerações por causa da guerra do Vietnam, o Movimento dos Direitos Civis, o início de uma tentativa de massificação comercial.
America é uma canção acerca de adolescentes desiludidos e perdidos numa América que perdeu o rumo, e que um dia simplesmente saem de casa, metem-se num autocarro e vão em busca de si mesmos e da nação que lhes ensinaram que era a melhor do mundo.
Abre com um murmurar da melodia essencial da música, quase como overture, e depois entram os acordes de guitarra,
A canção junta imagens e diálogos dos dois adolescentes, o narrador e a sua companheira Kathy, com uma melodia suave e simples, que apenas acompanha a descrição/narrativa.
Começa com uma proposta "Let us be lovers we'll marry our fortunes together", que não implica que sejam realmente amantes ou que se casem, mas simplesmente que se vão amar e que vão unir os seus destinos durante algum tempo. O narrador admite que tem algum dinheiro, compram cigarros e símbolos americanos ("Mrs. Wagners pies"), só aquilo que precisam, e "walked off to look for America".
Viajam ao longo da América, de autocarro ou à boleia, parando fugazmente em vários lugares. Começam em Saginaw, no Estado do Michigan, à beira dos grandes lagos, a norte de Chicago, e aparentemente estão a apanhar um mítico autocarro Greyhound em Pittsburgh, no estado da Pensilvânia, a leste de Michigan. Quem quer que já tenha feito viagens longas, com muitas paragens, reconhece a memória mais sensitiva do que concreta dos lugares por onde passou "Michigan seems like a dream to me now".
Os jovens divertem-se com as figuras que encontram no autocarro, as pessoas de quem vieram realmente à procura, os outros Americanos perdidos. "She said the man in the gabardine suit was a spy; I said "Be careful his bowtie is really a camera"
As conversas de pessoas que já não sabem o que dizer uma à outra, que começam a afastar-se, a isolar-se, a sentirem-se sozinhas, que é na realidade a única forma de se encontrarem mesmo, "Toss me a cigarette, I think there's one in my raincoat"; "We smoked the last one an hour ago" e uma imagem lindíssima de uma lua a nascer sobre aquilo que eu imagino sejam infindáveis campos de cultivo da típica abundância americana "And the moon rose over an open field".
No fim o narrador verbaliza o seu sofrimento. Mas não o faz à sua companheira, que provavelmente está perdida ela mesma. O narrador verbaliza e sintetiza o seu sofrimento para si mesmo, sabe que a sua companheira não o ouve, e fá-lo com o que parece ser quase surpresa.
"Kathy, I'm lost," I said, though I knew she was sleeping
I'm empty and aching and I don't know why
Olha para fora, conta a imensidade de carros no New Jersey Turnpike. Tendo começado em Michigan, passado por Pennsylvania e estando agora em New Jersey, é seguro assumir que vão em direcção a New York.
Vendo todas as pessoas nos carros da New Jersey Turnpike, o narrador não pode senão concluir que estão todos tão perdidos e desesperados como ele, e que, como ele, todos eles continuam à procura da América.
Nesta altura, a canção deixa o tom suave e calmo que tinha antes, e toma um tom magnânimo, quase um hino à juventude e à busca de identidade, com coros de vozes a entoar o melhor grito de guerra que podiam ter na altura: "All gone to look for America!".
Anna Karenina está escrita num estilo realista, fazendo Toltoy uma descrição pormenorizada da sociedade citadina e campestre na Rússia durante o séc XIX.
O autor utilizou o recurso aos pensamentos das personagens para dar ênfase ás questões que o preocupavam. Recorre essencialmente a Anna Karerina e Levine,personagens que demonstram estilos de vida e atitudes opostas.
Tanto questões sócio-políticas (o lugar e o papel dos camponeses russos na sociedade, a reforma da educação, e direitos das mulheres), como morais (hipocrisia, a inveja, a fé, fidelidade, família, casamento, sociedade, do progresso, desejo e paixão carnal, e a conexão à terra agrária em contraste com o estilo de vida da cidade)são debatidas ao longo do romance, sendo possível vislumbrar a opinião do autor.
Pessoalmente, achei um livro extremamente bem escrito e muito fácil de ler. As mensagens politico-sociais são claramente divulgadas e defendidas, tendo por base a realidade pré-industrialização russa, onde se assumia a industria e a cidade como sendo os destruidores da vida camponesa. A nível religioso, constitui um romance bastante moralista, no qual transparecem as ideias fundamentais da Igreja católica, que são discutidas até ao fim do livro. "Haverá sempre um castigo "adequado" pelos actos moralmente condenáveis cometidos anteriormente" será talvez a grande mensagem.
Por fim, é fácil constatar que o romance é um pouco auto-biográfico. Levine é sem dúvida a personagem central. Este é utilizado pelo autor para discorrer as suas opiniões e fundamentos das mesmas.
Lembram-se do avô cigano, aquele que morre no dia do casamento? No filme chama-se Grga Pitic.
Esse cigano entrou-me no serviço há três dias. Vou chamar-lhe Grga Pitic na mesma.
Grga é um velho rabujento, rezingão, apelativo, cheio de manha. Sabe exactamente quando se queixar de dores e quando estar calmo e pedir as coisas com jeitinho.
Mas quando era jovem, Grga Pitic contrabandeou cigarros nos mares da Indonésia, com piratas de singapura. Roubou vagões de comboio cheios de whisky escocês em vilas nos arredores de Belgrado. Grga Pitic trapaceou os Reis da Holanda a comprarem jóias falsas, que na realidade tinham sido roubadas à casa Real do Sião, mas ele não sabia isso. Grga Pitic pôs bombas nas linhas de comboio de abastecimento dos batalhões alemães durante a segunda guerra mundial, e ninguém lhe deu crédito por isso. Em vez disso foi acusado de ter posto bombas nas linhas de comboio de abastecimento de batalhões alemães e levou uma tareia por causa disso. Tocou violino para casais ricos em Viena, enquanto os filhos lhes roubavam os bolsos, e vendeu passaportes falsos em Casablanca. Lançou maldições e feitiços em parvos que iam acreditar nelas. Grga Pitic vendeu urina à minha avó, depois de a ter convencido de que era perfume.
Não sei se estas coisas são verdade, gostava de imaginar que sim.
O que sei é o seguinte.
No meio da confusão e agitação geradas pelo nevoeiro da dor e do haloperidol, Grga Pitic teve o discernimento de pedir que lhe trouxessem a mulher, doente acamada em casa, para se poder despedir dela.
Hoje escrevi na pasta de Grga Pitic "não reanimar".
Uma parte muito significativa da vida de muitos funcionários de instituições, é passada em reuniões. Reuniões de apresentação de resultados, discussão de objectivos, estabelecimento de prioridades, afinamento de protocolos. Trata-se de uma actividade tão consumptiva de tempo que tem a sua linguagem própria, e as pessoas que conhecemos são diferentes, quando estão em reunião. Mais formais. Mais centradas nas suas competências chave, para promover sinergia.
A verdade é que as reuniões deviam servir para estimular a colaboração, mas na realidade servem para confrontar pontos de vista irredutíveis e para esgrimir argumentos sectários, acirrar rancores antigos encapotados, apontar o dedo a quem pretensamente errou, e, mais gratificante ainda, dizer, repetir e repisar: ''eu avisei, mas vocês não quiseram ouvir, sobre o que quer que seja''. E toda a gente leva a mal se for interrompida.
A administrativa das manias, fala com a lentidão dos arrogantes, não arrastando, mas demorando a voz nas sílabas mais petulantes de um discurso técnico impenetrável, sobre o decreto que revoga a directiva. A sua expressividade concentra-se nas sobrancelhas altas e hirtas, que se juntam no meio, em duas rugas profundas. Tem a condescedência a fazer-lhe descair as palpebras, e fala com movimentos mínimos dos lábios. Enquanto não está a corrigir o interlocutor em pormenores irrisórios e processuais, com esgares superiores e semi jocosos, olha para a caneta de tinta permanente pousada na pasta de cabedal, e brinca, de maneira contida, com os óculos de sol, ignorando activa e completamente os diálogos idiotas que se vão desenlolando à sua volta. A reunião divide-se no tempo que ela fala, e no tempo que ela tem que esperar para falar outra vez.
Directamente à frente da administrativa das manias está a gorda acelerada, que está revoltada. Quando a gorda acelerada não está a ler a revista Telenovelas, está revoltada com qualquer coisa. Ela pode não saber bem o que passa à sua volta, nem do que se está a falar, mas com ela ninguém faz farinha. A ela ninguém a engana. Reclama sempre em excesso, porque já aconteceu ela reclamar, e ser enganada na mesma. E ela pode ser estúpida, mas suspeita que vai acontecer outra vez. De vez em quando, ameaça que se não for assim como diz, é capaz de meter atestado e não vir trabalhar. Toma e embrulha. Continua a rebater as parvoíces que tinham sido postas em consideração na intervenção anterior, com parvoíces de igual calibre, e que os outros abram os olhos, porque ela não é menos que ninguém. Quando a gorda acelerada está calada, os seus olhos e boca semi aberta fazem lembrar um peixe que se perdeu no próprio aquário.
No topo da mesa, está a bajuladora do feudo. Vêm à memória comparações fáceis com criaturas em baixo posto na cadeia alimentar. Anseia por fazer ouvir a sua voz melosa, que nunca diz nada remotamente polémico. As coisas estão bem como estão, toda a mudança é má, a não ser que devidamente sancionada pelo chefe. Tem no ADN o politicamente correcto, o menor denomindador comum. Sentimentalismo barato, psicologia de bolso. O BOM SENSO, e acima de tudo, coitadinhos dos coitadinhos. A bajuladora do feudo cospe truísmos inofensivos, empolgada como se falasse de um púlpito, sobre os destinos da nação. Acompanha o chorrilho de parvoíces lapalissianas com olhares periódicos na direcção do chefe, em busca do mínimo sinal de desacordo. Caso este surja, a bajuladora do feudo começa a minguar e cala-se, ouvindo atentamente o chefe. Na próxima intervenção irá concordar avidamente com o chefe, justificando-se: ela queria dizer exactamente o que o chefe disse, mas reconhece que pode ter-se expressado mal. Reorientada, vai recuperar momento linear, com novas verdades evidentes e evidências gritantes, soprepostas de maneira redundante num discurso completamente vazio de conteúdo. ''Diga chefe? Como é que se resolve o quê, chefe?''
O chefe é um daqueles bonacheirões preguiçosos que confunde boa fé, com deixar toda a gente fazer o que lhe der na real ganha. Tem a barba por fazer, e pentar é um verbo que desconhe. Afinal, ele é o chefe. Sei que provavelmente a memória me trai, mas imagino-o com a camisa às riscas verdes e cinzentas que o Caldeira usava. Sempre. O chefe observa um horizonte imaginário com um expressão que trilha a linha fina entre a reflexão profunda e o coma profundo. Aparenta estar alheado, enquanto as galinhas cacarejam furiosamente à sua esquerda. Não o consigo culpar. O facto é que nenhuma galinha ouve o que as outras dizem, e as respostas de uma, nada têm que ver com as questões levantadas pela anterior. Embora a realidade não o confirme, toda a postura do chefe transmite que ele coça os tomates languidamente, completamente negligente para meras questões terrenas. Tem os olhos pachorrentos de um São Bernardo que ficou fascinado com a morte da bezerra, e é mesmo possível medir a passagem do tempo na reunião, pelo grau de afundamento do chefe no seu cadeirão. À medida que o chefe escorre na sua cadeira, torna-se claro o desejo do seu queixo descansar no plano que repousa em cima do globo às listas verdes e cinzentas que é a sua barriga de cerveja, e não consigo deixar de me perguntar se, desde o início, foi este o verdadeiro e último objectivo desta reunião.
Suponho que, no último dia da nossa vida, percebemos aquela conversa, popularizada em email em cadeia, sobre como devemos valorizar as pequenas coisas, não tomar a vida como garantida, e bem, viver cada dia como se fosse o último. Percebemos também a necessidade de alguém tentar transmitir a intensidade com que se vive os últimos instantes, os arrependimentos que nos pesam no espírito, e o esforço, sempre vão, de tentar pôr por palavras a necessidade de viver uma vida plena, de maneira a não ter lamentações no leito de morte. Claro que ninguém entende a verdadeira dimensão desse sentimento, mais que um doente terminal consegue convencer um fumador em cadeia a largar o tabaco.
Os lençois estavam amarfanhados pelas voltas que ele tinha dado durante aquelas primeiras horas da manhã. Tinha transitado directamente de um sonho, desfiado no escuro do quarto, para uma memória esbatida de uma citação de um filme descolada do seu subconsciente por motivos que não ascenderam com ela. ''Today is the first day of the rest of your life. That is true for every day, except the day you die...'' Sabia que ia estar nostalgico. Já tinha negociado consigo próprio esse estado de espírito, durante dias e dias de tortura existencial, entre a negação e o desespero. Era fim de semana e ele estava sozinho. Tinha-se finalmente habituado à ausência de vozes na casa ao sábado de manhã. Fazia parte do acordo.
Levantou-se, completamente desperto, e testou a solidez da sua força de vontade de suster a angústia que o aproximar da hora designada iria despejar sobre si. Entrou na casa de banho e começou a tossir. Cuspiu o sangue durante um bocado. A quantidade era substancialmente menor que o normal, e o facto de estar ocupado a fazer alguma coisa, tirou-lhe alguma ansiedade dos ombros. Recompôs-se, e vestiu-se.
Percorreu as ruas da cidade, ainda desertas, sem destino. Perdeu-se num beco desconhecido, e quando voltou à rua principal viu duas senhoras idosas que se dirigiam para a igreja da freguesia. O sino metálico tocava lenta e melancolicamente à distância. Enquanto olhava para elas, alguma coisa lhe devolveu à consciência o seu propósito. Estava atrasado. As 9.07 o comboio partia, e ele ainda estava longe. Subiu a rua, e virou à esquerda, e viu a estação ao fim da rua. Tinha estado com medo de não conseguir, que no último momento lhe faltasse a coragem, mas sentia-se estranhamente bem, sereno. Fugia ao pesadelo. Sentiu os seus movimentos como automáticos enquanto passava a vedação. Não olhou para os lados. Só abriu os olhos quando um silvo cortou o ar.
No último momento, sabia que ia acontecer alguma coisa, mas em vez da vida lhe passar em frente dos olhos, teve uma sensação familiar que o assaltava no fim de dias pouco produtivos, durante o seu tempo com a empresa. Nos dias em que havia trânsito, a máquina das fotocópias estava avariada, a burocracia aumentava nas caixas de arquivo, apesar das suas horas perdidas a preencher papéis e a fazer telefonemas. Não fazia nada de jeito à tarde, tinha 7 coisas para despachar e obstáculos logísticos e circunstanciais metiam-se no caminho de fazer a primeira. Sentia-se frustrado e desiludido consigo próprio. Não tinha conseguido viver aquele dia. Acabava por procrastinar tudo para o dia seguinte, ou para quando tivesse tempo.
Sentia que a sua vida tinha sido curta, tão curta, que o tempo útil dos seus anos de ouro tinha sido desfeito sob o peso das pequenas coisas corriqueiras do dia-a-dia que têm que ser resolvidas. E pela sua própria negligência e preguiça. A sua vida não era diferente da de milhões de outros seres humanos, no que diz respeito a riqueza de experiências, e esse facto parecia-lhe o pior insulto do mundo.
Finalmente lembrou-se de ter visto uma pessoa ter um enfarte na rua, um dia. Tinha um olhar de surpresa na cara. Não de medo, não de pânico ou desespero, mas de surpresa. Como se tivesse se tivesse planos para amanhã, e aquilo os estragasse irreparavelmente. Ele não tinha morrido. Só lhe tinham tirado o tempo.
Saber tudo o que ainda tinha para fazer é que era a maldição intolerável. No último instante invejou as pessoas que ficam dementes. No final, a demência talvez fosse a maneira do cérebro se defender de saber todas as coisas que ainda havia para fazer, que iam ficar pendentes, após o fim do tempo.
Desde que mudei de local de trabalho que tenho estado responsável por fazer os exames médicos que permitem aos cidadãos comuns terem direito a renovar a carta de condução. Parece uma responsabilidade de somenos importância. E é. Mas tem nuances divertidas.
No primeiro dia, quando me explicaram sumariamente o que tinha que fazer, disseram-me repetidamente que: ''nós não estamos aqui para prejudicar as pessoa'', e ''muitas destas provas são uma formalidade'', ''nos não estamos aqui para dar lições de moral a ninguém'' e talvez mais demonstrativo: '' a única tensão que interessa é a mínima, tem que estar abaixo de 95. A máxima pode estar a 250, que passas a pessoa na mesma.'' right... Eu não me tomo como um gajo muito rigoroso, e acho que não tenho uma atitude demasiado paternalista... Mas se me atribuirem uma tarefa, tento desempenhá-la. Até porque não há mais nada para fazer.
Até ao dia em que o senhor, vamos chamar-lhe Joaquim, de 81 anos veio renovar a carta de condução. Disse-me a funcionária: ''está lá dentro o senhor Joaquim, que é um velhote muito querido.'' Vou tentar não me perder com as objecções que se podem levantar ao conceito. Vou só dizer: os velhotes não são queridos. Um golfinho, um arco íris duplo, a hello kity - são coisas comunemente catalogadas como queridas. Um senhor que treme constantemente enquanto olha o infinito, e conta histórias circulares interrompida de vez em quando, para mastigar em seco, não é querido. É, vamos lá, um venerável no ocaso da sua vida. Todo o respeito e consideração aos idosos. Eu também quero lá chegar. Mas, se lá chegar não quero que me chamem 'querido', como se eu fosse um porquinho da índia.
Entrei na sala e saudei o senhor Joaquim. Era um velhote simpático, meio despistado e bem disposto, que, da última vez que cá tinha estado, se tinha esquecido dos óculos. Não tinha passado no exame porque tinha um acuidade visual binocular de 3/10, sem óculos. Desta vez tinha trazido dois pares de óculos e estava pronto a começar. Apontei a fila de letras que já sei de cor, correspondente a 5/10, o mínimo para poder passar-lhe o atestado. Não acertou uma. Até disse números. Fiquei desconfortável, pedi-lhe para mudar de óculos, apontei de novo. Não senhor Joaquim, aquilo é um Z, não um M. Não, o F foi a letra anterior. Este é um H. Confrontado, reclamou que via melhor sem óculos, que só atrapalhavam. À terceira tentativa acertou metade das letras.
Dolorosamente comecei a fazer o meu papel, de dizer ao senhor Joaquim que não iria poder voltar a conduzir, e ele começou a fazer o papel dele: ''Estou perfeitamente bem, então o dr acha que eu vinha renovar a carta, se não visse nada?''. Continuei a explicar. Passámos por onde passamos sempre: '' Você sabe quantos anos tenho eu de carta? 50 anos. O Dr tem que idade? Não preciso de um bocado de papel para conduzir...'', e depois: ''Era só para ir dar uma volta ao Algarve com a mulher agora no Verão... depois já nem preciso, depois nem estou a pensar em conduzir!'' e finalmente: ''Olhe, você sabe o que eu vou fazer se não puder conduzir? rasgo a carta, queimo-a, e fico em casa.'' Contei mentalmente: negação, raiva, negociação, depressão... e nem tinham passado 15 minutos! O senhor Joaquim estava com presa. Disse-lhe que se a polícia o apanhasse sem carta era chato, ao que ele respondeu que se visse a polícia fazia-lhes um manguito, e mandava-os para a cona da mãe deles. Disse isto sempre a sorrir. Foi aqui que percebi que ter ou não carta, era o menor dos problemas do sr Joaquim.
Liguei ao chefe que me respondeu que não, se ele não tinha no mínímo 5/10, não podia passar. Disse-lhe que concordava, o sr Joaquim é que estava a ser teimoso, e... ''Espera, o sr Joaquim?'', ouvi do outro lado. ''é um velhote simpático com um braço prostético?'' sim... ''Esse senhor é um velhote muito querido, que tem muito cuidado na estrada, esqueceu-se dos óculos a última vez...'' Retorqui que mesmo com óculos ele era capaz de confundir a vizinha do rés do chão com um marco do correio. ''Pois, mas eu conheço-o ele orienta-se bem, e nós não estamos aqui para cortar as pernas a ninguém, e além disso...''. O que aconteceu a seguir é fácil de inferir.
Não percebo o conceito do velhote querido. Mas acho que é como uma criança mimada, a quem se desculpa muita coisa, porque apesar de não jogar com o baralho todo, consegue ser simpático, bem disposto, e ter aquele ar despreocupado, que nos faz a todos pensar ''quem me dera ser assim quando chegar à velhice, tão cheio de vida''. A quem pensa assim, eu respondo: Não é vida. É demência.
E claro que preferimos todos imaginar o senhor Joaquim a ir para o Algarve com a esposa, pelo caminho encontrar a psp, e num acto perfeitamente aleatório, mandá-los todos para locais já referidos. Consigo imaginá-lo em situações absurdas e perigosas, que se resolvem para melhor através de uma combinação bem ponderada de ingenuidade, despreocupação, e muia sorte. Porque a alternativa é imaginá-lo a entrar em contramão numa autoestrada e levar tudo à frente, sempre muito sorridente e bem disposto.
António está na fila para ir comprar um hamburguer. Já há muito tempo que não come um e hoje está-lhe mesmo a apetecer. Que se lixe a dieta. Vai deleitar-se com uma coisa qualquer com dois bifes, muito queijo, cebola e bacon. Chega a sua vez, ele pede o seu hamburguer duplo com queijo e extra bacon, e num acesso de loucura, até pede as batatas fritas grandes.
Paga, e aguarda impacientemente que a rapariga com a cara cheia de acne e o olhar vazio lhe traga a sua comida. Passados alguns minutos, e cada vez mais cheio de fome, António vê chegar a rapariga com o seu pedido. Sem nenhuma cerimónia a rapariga anuncia: "Burger duplo de queijo, extra bacon e batatas grandes" ao mesmo tempo que deposita na bancada à frente de antónio uma grande bota.
António olha incrédulo para a bota durante uns segundos. Vira-se para a rapariga, mas percebe que do seu olhar vazio não vai obter respostas nenhumas. Volta a observar a bota velha que tem à sua frente, e só consegue pensar "Outra vez...".
António pega na sua bota e leva-a para uma mesa de onde acabaram de se levantar um casal de meia-idade que tinha ido comer sopa. Fica uns minutos a olhar resignado para a sua bota. É uma velha bota. Não é uma bota da tropa. É uma bota daquelas que as pessoas usam no inverno. Ainda tem um pouco de lama nos atacadores. Não está estragada nem nada, mas vê-se que já foi usada. António pondera como é que a sua vida chegou a isto. Ele estava convencido que já tinha passado esta fase. Que já tinha ultrapassado os problemas e as dificuldades, que a sua vida estava finalmente a melhorar. Mas afinal, ainda lhe trouxeram uma bota quando pediu um hamburguer.
António olhou para o menu iluminado do restaurante, e lá viu, realmente, em letras muito pequeninas, a seguinte mensagem "Todos os pedidos serão automaticamente substituídos por uma bota velha se o cliente não anunciar explicitamente que não quer uma bota".
António tinha-se esquecido, mais uma vez. E agora tinha apenas uma bota à sua frente.
Ponderou gravemente que as coisas tinham de mudar. Que não queria mais botas na sua vida, e que gostava que quando pedisse um hamburguer lhe trouxessem, de facto, um hamburguer.
Porque chega um momento na vida de cada um em que é altura de gritar bem alto "Eu não quero uma bota!". Chega a altura de nos levantarmos, e exigirmos o nosso direito de não ter uma bota velha quando pedimos um hamburguer!
Em 2007 a Valve lançou um jogo chamado Portal. E foi a loucura.
Aquilo que era originalmente para ser um jogo extra, numa promoção que pretendia vender dois pesos pesados (Half-Life 2 e Team Fortress 2), rapidamente se tornou num dos jogos mais aclamados de sempre.
Portal tinha muitas coisas a seu favor. Em primeiro lugar estava construído com o motor de jogo da Valve, que já tinha sido extensivamente testado e aperfeiçoado com jogos monstruosamente bons como o Half-Life 2, e que lhe permitia efeitos de luz e física fantásticos.
Depois usava como mecânica de jogo uma ideia extremanente original: a criação de portais. Basicamente a personagem principal (Chell) tem uma Portal Gun que dispara portais para superfícies planas. Pode depois atravessar esses portais para atravessar grandes distâncias ou contornar obstáculos aparentemente inultrapassáveis. Isto é simultâneamente mais simples e complicado do que pode parecer à primeira vista.
A grande vantagem do jogo foi que não foi vendido desenvolvido como jogo de acção (contrariamente ao Prey, que apesar de também usar brincadeiras de física, era sobretudo um shooter), mas sim como um jogo de puzzles. A personagem principal tem de ir resolvendo uma sequência de puzzles progressivamente mais complexos, sempre recorrendo à Portal Gun. Estes puzzles estão extremamente bem desenhados, sendo que não são necessariamente mais difíceis, mas cada um deles exige ao jogador que pense numa maneira diferente de usar os portais para chegar à saída, recorrendo a truques que aprendeu em puzzles anteriores. O jogo nunca se torna maçador, dificilmente se torna frustrante e é sempre desafiador.
Mas estes são os aspectos técnicos do jogo.
A Valve desde cedo que nos habituou a jogos movidos pela história. O seu primeiro jogo, Half-Life, lá longe em 1998, foi revolucionário no seu uso da narrativa dentro do jogo (sem recurso a cut-scenes) para fazer avançar o argumento sólido do jogo de uma forma fluida e credível. Portal teve o benefício dessa experiência.
A personagem principal, Chell, acorda de uma câmara de estase dos laboratórios da Aperture Science, apenas para ser informada de que será submetida a uma sucessão de testes progressivamente mais complicados, como se se tratasse de um ratinho de laboratório. A guiá-la está GLaDOS, uma inteligência artifical que aparentemente gere todo o complexo.
Ora a GLaDOS... A GLaDOS é difícil de explicar sem estragar muita da história do jogo. E como eu já disse uma das grandes forças do jogo é a sua história.
GLaDOS aparenta ser extremamente prestável ao mesmo tempo que revela um total desinteresse pela segurança e bem-estar pela personagem principal, bem como por qualquer outro tipo de ser humano. Enquanto resolvemos puzzles a GLaDOS está sempre lá a oferecer conselhos inúteis e a sugerir que a nossa vida não tem valor absolutamente nenhum, e o que interessa é a ciência, mas sempre com promessas vagas de que no fim haverá bolo.
Os monólogos de GLaDOS estão extremamente bem escritos, com um humor negro tremendamente requintado, que são definitivamente a alma do jogo. A maioria dos puzzles envolvem de uma maneira ou de outra a obtenção de um cubo que deve ser posto em cima de um botão para abrir uma porta (isto é uma sobre-simplificação horrenda). Mas a determinada altura no jogo um desses cubos tem um pequeno coração. É o Companion Cube, e GLaDOS avisa-nos constantemente que se trata apenas de um objecto inanimado e de que não devemos criar laços afectivos com ele. Pouco tempo depois GLaDOS informa-nos que chegou a altura de eutanaziar o Companion Cube.
O enredo propriamente dito (que eu não vou revelar aqui) é contado exclusivamente por elementos dentro do próprio jogo. Não há narração, nem texto a aparecer no ecrãn. Tudo é inferido pelas pistas vagas dadas pela GLaDOS, por notas escritas nas paredes por outros sujeitos de teste, pelo próprio ambiente pelo qual Chell navega. Isto leva a que a história e o mundo sejam extremamente envolventes e imersivos, o que leva, naturalmente, a um investimento emocional tremendo na história.
Acabei, há umas horas, o Portal 2, e deixem-me dizer-vos que consegue ser melhor ainda que o primeiro.
A mesma excelência visual e técnica está lá, o mesmo humor está lá, os puzzles são novos e mais complexos com a adição de nova tecnologia para brincar. Portal 2 tem a vantagem de ser uma sequela e poder partir de bases já criadas. Assim a história progride mais depressa e desta vez mostra-nos um pouco mais da história da Aperture Laboratories e introduz algumas novas personagens.
A história está pelo menos tão bem escrita como o primeiro, e houve de facto algumas situações nas quais eu dei por mim com a respiração e a frequência cardíaca acelerada de tão emocionante que a história era!!
Portal 2 é pelo menos umas 3 vezes maior que o primeiro, e tem uma componente de co-op, que eu ainda vou experimentar.
Mais do que simplesmente um jogo, Portal é toda uma experiência. Todos os elementos estão de tal maneira conjugados, o mundo está tão bem construído, tão bem integrado no universo do Half-Life, os detalhes são tão adoráveis, que é impossível uma pessoa não se enamorar pelo jogo e por todos os detalhes nele inseridos.
Portanto mesmo que geralmente não comprem jogos, se comprarem um único jogo que seja este ano, que seja o Portal 2.
E já agora deixo-vos com esta pérola de brilhantismo do primeiro jogo:
São raras as vezes em que uma tal intersecção de campos de conhecimento se proporciona, mas quando acontece é verdadeiramente um momento de rara beleza.
Hoje na consulta de Oncologia, apareceu um jovem de 29 anos.
E antes que me comecem a gritar "Gozar com pessoas com cancro é ir longe demais" deixem-me já dizer que este jovem já tinha o seu cancro controlado e estava a ir à consulta de revisão de 1 ano, e que estava tudo bem.
Este jovem tinha em particular o seguinte facto: estava a usar uma t-shirt geek.
Ora o que acontecia há alguns anos no que tocava a comunicação de sub-culturas, era que esta estava basicamente confinada ao mundo da música. Duas pessoas que se cruzassem na rua, e uma delas estivesse a usar uma t-shirt de uma banda extremamente obscura que ambas conhecessem, teriam imediatamente um ponto de contacto e comunicação, sem precisarem de dizer o que quer que fosse, e que era completamente inescrutável à vasta maioria da população.
Como eu dizia isto era um fenómeno razoavelmente confinado às subculturas musicais. Actualmente toda a gente tem t-shirts de tudo e mais alguma coisa. O fenómeno de se parecer esperto usando t-shirt generalizou-se, e então existem imensas pessoas com t-shirts a dizer "O Pluto é filho da Pluta" ou então "Faz-me um Bico" com uma ilustração de um pássaro sem bico.
O que isto proporcionou foi que os geeks (em rápida ascensão de popularidade, um tema para outro post) tivessem uma nova porta aberta para comunicarem entre si e à exclusão de todas as outras pessoas (na maioria das vezes para grande surpresa do geek ele mesmo).
Nomeadamente, este jovem que me apareceu hoje na consulta vinha com uma t-shirt com a seguinte ilustração:
Naturalmente que o médico sénior com quem eu estava perguntou ao jovem "O que é a P-W-N age?". O jovem, esboçando um sorriso de satisfação que bordejava o condescendente e o embaraçado (condescendente por ser possessor de um conhecimento de nicho extremamente obscuro de que a população em geral não faz ideia que existe e embaraçado por ser por possessor de um conhecimento de nicho extremamente obscuro de que a população geral não faz ideia que existe) e passou a explicar: Pwn é um termo de internet associado aos shooters, que é usado quando alguém consegue obter uma vitória humilhante sobre o seu adversário. Esse adversário foi pwned.
O médico sénior esboçou um sorriso vagamente interessado e condescendente e ignorou o rapaz durante o resto da consulta.
Eu no entanto senti uma simpatia fraterna por aquele geek. Eu também já usei t-shirts ininteligíveis para a maioria das pessoas e tive de as explicar embaraçadamente. Naquele momento só não expressei o meu apoio a um fellow-geek porque estava do lado de cá da secretária e não ficava bem começarmos a discutir que jogos jogávamos.
Outro dado interessante é que este jovem geek tinha tido um cancro testicular.
Sim, isso mesmo: um cancro testicular.
O que eu pensei na altura foi: "Não há mais teabagging para este jovem..."
Contrariamente ao que vos possam dizer, esta história não tem semelhança nenhuma com a História dos Macacos. A História dos Macacos é pior. A História dos Macacos não tem nada a ver com isto, e muito menos tem a ver com aviões carregados de clones do Gorbachev.
Imaginem:
Dois polícias, sentados num carro de polícia escondido atrás de um pilar de uma ponte. O polícia do lado do passageiro empunha um aparelho electrónico parecido com os radares de velocidade. Do outro lado da estrada vai a passar um homem gordo. Veste uma t-shirt demasiado pequena e calções que ficamd emasiado justos nas virilhas. O polícia aponta ameaçadoramente o aparelho electrónico na direcção do gordo. A máquina apita estridentemente, enquanto pequenas luzes passam de verde a vermelho, e o polícia diz, numa voz grave e profissional "Hipercolesterolémia. 325mg/dL... vamos apanhá-lo."
Os polícias aproximam-se do gordo, que quando os vê se mostra imediatamente defensivo. Polícia 1 - Então, que é que temos aqui? Gordo - Nada, sr. polícia. Está tudo bem! Polícia 2 - Ai sim? Então não sabe que ia com hipercolesterolémia? Gordo - Não, isso é impossível! Nunca me aconteceu antes! Polícia 1 - Ah pois é... ia com 325mg/dL Gordo - É metabólico... Polícia 2 - Então e o que é isso aí no seu bolso? Um Snickers, huhn? Gordo - Isso não é meu, é de um amigo meu. Ele pediu-me para guardar! Não é meu!
Um funcionário do governo, de fato e gravata, dirige-se para a entrevistadora e responde "A obesidade é um problema de saúde pública. Eu sei que ninguém quer realmente abordar a situação, mas está a tornar-se demasiado. Há demasiados gordos! Eu hoje quase não conseguia encontrar lugar para estacionar o carro. Não se trata de uma questão de discriminação, mas é um problema que tem de ser resolvido"
Apesar de várias medidas impostas, os gordos proliferam como coelhos perturbando o funcionamento da sociedade. Está documentado por estudos científicos fidedignos que uma pessoa saudável, após exposição prolongada a um gordo, tem um aumento de pelo menos 73,4% nos seus valores de açúcar no sangue.
Após várias tentativas de resolver o problema, decidiu-se que a melhor solução era devolver os gordos ao seu habitat natural.
Dois agentes da Polícia dos Gordos estão agachados numa esquina, com uma cana de pesca. Um deles tira com grande cuidado uma pequena caixa de alumínio cromado e põe duas luvas de borracha, abrindo a caixa com um hfsssss esterilizado. De lá de dentro tira com todo o cuidado um Bollycao, como se este fosse explodir a qualquer momento, que prende ao anzol da cana de pesca. O outro agente roda habilmente a cana de pesca e atira o Bollycao para o meio da rua. Apenas momentos depois a linha dá um esticão, e o polícia é quase arrancado do seu lugar. O segundo polícia agarra-se a ele, e juntos, a custo puxam um gordo que mordeu o Bollycao. Será preciso sedar o gordo antes que seja possível retirar o Bollycao das suas poderosas mandíbulas.
Numa savana africana vemos um helicóptero a levantar voo, enquanto o gordo acorda lentamente no meio da relva, vestido apenas com umas cuecas brancas e óculos para ver ao longe. Inicialmente desorientado, rapidamente o gordo encontra uma manda de gordos. Após breves momentos de desconfiança e hesitação, o gordo é aceite na manada, e corre livre pela savana com os outros gordos.
Já me dei por várias vezes a conversar com pessoas inteligentes acerca de coisas e crenças que muito me surpreendem pertencer a pessoas inteligentes.
Dou como exemplo as auras, só porque foi o caso mais recente com que me deparei.
Passei uma boa porção de um serão nocturno a conversar com um tipo perfeitamente inteligente e eloquente, que me queria convencer de que as auras existem e de que ele as sentia.
Basicamente, as auras, tal como ele as explicava eram o seguinte: as pessoas libertam energia, essa energia muda conforme a personalidade e estado de espírito de cada pessoa, e é possível sentir e perceber, consciente ou inconscientemente, a energia dessa pessoa.
Por exemplo, dizia ele, se alguém enraivecido ou agressivo se aproximar de mim, eu percebo-o antes de haver alguma manifestação expressa ou externa disso. Se várias pessoas estão a conversar a uma mesa, e uma vira a sua atenção para outra, então está a dirigir a sua energia para ela.
Eu disse-lhe que não havia nenhum tipo de fundamento lógico para supor que se tratava de "energia" que irradiava da pessoa e que se transmitia entre pessoas, que poderia haver uma explicação perfeitamente banal e prosaica para o que ele descrevia.
Ao que ele respondeu "Sim, mas isso é se fores lógico!"
E eu fiquei sem resposta... porque... quer dizer... que é que se pode ser se não lógico? Que maneira há de pensar, que não lógica?
Faz-me lembrar uma senhora francesa com quem conversei uma vez num avião, que me estava a tentar convencer dos benefícios da homeopatia. Eu expliquei-lhe que cientificamente era impossível a homeopatia funcionar ela disse-me também que isso era se eu acreditasse na ciência. Que podia haver mais coisas para além da ciência.
Também dessa vez me encontrei sem resposta.
A verdade é que nunca pensei ou operei sob nenhum outro sistema que não a lógica ou a ciência. Porque... basicamente... qualquer outro sistema não tem lógica ou é científico e eu não o consigo valorizar. Não faz sentido...
O que estas pessoas descrevem é pensamento mágico. O pensamento mágico é, basicamente, quando uma criança acredita que se usar as meias azuis terá boa nota no teste. É de facto uma das características da infância, e uma das coisas que a criança deve ultrapassar no seu desenvolvimento e maturação.
E no entanto todos os dias deparo-me com exemplos de pensamento mágico em adultos inteligentes e funcionais. Pessoas que me aparecem nas consultas, absolutamente convencidas que aquela dor nas costas apareceu porque naquele dia beberam dois cafés ao pequeno almoço em vez de um.
A melhor explicação para a existência de pensamento mágico que encontro é de que as pessoas preenchem os espaços do seu conhecimento com a explicação mais simples e directa que encontram.
Há ignorância, e então como a mente humana recusa não compreender algum fenómeno, vai aplicar uma explicação a esse fenómeno, por mais absurda que possa parecer.
A maioria das pessoas não faz a mínima ideia de como funciona o seu corpo (o que é uma noção estranha, dado que nada é mais próximo e imediato que o próprio corpo), e então atribui causalidades mágicas ao que acontece.
As pessoas ignorantes atribuem a maioria das explicações a Deus, ou outro qualquer ser místico e incompreensível que faz acontecer as coisas.
Estas pessoas inteligentes, por não terem conhecimentos aprofundados de ciência, acreditam em coisas como as auras e a homeopatia.
No entanto elas fazem um argumento interessante. Porque é que a lógica há de ser o melhor modelo de pensamento? Não estaremos perante um exemplo de Chauvinismo Lógico?
O problema é mesmo um de pensar de maneira não lógica.
A ciência ensina-nos que as teorias explicativas só servem enquanto não surgir nada melhor ou que explique as coisas de maneira mais exacta ou coerente. No entanto a própria ciência é um modelo de pensamento lógico.
O que é que resta? A simples observação empírica da realidade? Mas isso não permite fazer previsões, e precisamos de fazer previsões para sobreviver.
Talvez um modelo de pensamento mágico seja de facto melhor que um modelo de pensamento lógico para algumas situações? Quais? Não faço ideia.
Poderá eventualmente surgir alguma coisa melhor que a lógica? A lógica diz-me que é possível. Mas isso não deita abaixo a própria lógica? Talvez não.
Não sei. Este é um assunto sobre o qual tenho de pensar mais.
Como tantos outros IAC, comecei a ir ao Ginásio. Pareceu-me boa ideia. Mexer-me um bocado. Prevenir doenças cardiovasculares. Ver umas meninas a trabalharem os adutores. Vários motivos. Todos válidos. Mas os ginásios não são o que eu me lembro... pelo menos no que diz respeito ao ambiente. No primeiro dia que lá fui, estive com um rapaz muito simpático, que sabia menos de fisiologia que o animal de estimação médio, que me explicou muitas coisas sobre a minha massa gorda. Lembro-me de pensar que aquela conversa devia funcionar espectacularmente com as gajas. Depois fomos para a passadeira rolante, onde tivemos a fazer conversa de café, sobre o tempo. E depois de testar várias máquinas ele deu-me um cartãozinho com o que eu devia fazer para ''hipertrofiar''. Que aparentemente é um verbo pessoal, aplicável a um qualquer vulgar cidadão. E assim comecei a ''hipertrofiar''. Coisas que me divertem enquanto hipertrofio:
- Raparigas esqueléticas a maltratarem a eliptica, enquanto umas gordas ficam no café, à entrada do ginásio, a comer folhados mistos.
- Raparigas gordas que de facto vão ao ginásio, e escolhem fatos justos para acentuarem as suas pregas, ficando com um aspecto parecido ao do boneco da michelin. Mais divertido, só quando elas se sentam naquelas bolas gigantes de pilates, e me fazem lembram bonecos de neve. Quase que dá vontade de lhes pôr uma cartola e um cachecol, e cantar Frosty the snowman.
- Mastodontes injectados de esteróides a levantarem pesos horizontais, com máscaras distorcidas por um misto de raiva e esforço. As veias do pescoço destes meninos são da espessura de dedos. Eles divertem-me, porque tem pernas iguais às minhas, que parecem canetas. Quando caem de costas têm dificuldade em retomar o ortoestatismo. É o problema do hipertrofiânço assimétrico, e um flagelo ocupacional de muitos porteiros de discoteca do nosso país.
-Raparigas boazonas que olham em todas as direcções enquanto as suas glândulas baloiçam em roupas que pouco deixam à imaginação. Só para depois fazerem olhares reprovadores e ofendidos quando algum coitado de facto olha para aquela armadilha bamboleante.
- Grupos de amigos a discutirem qual o produto mais impressionante em termos de ganho de massa muscular. Adjectivando-se de ''inchado que nem um porco'', para descreverem o objectivo a almejar. Acho que a nandrolona é o último grito.
- Jovens que depois do banho se secam em frente ao espelho. Epa, evitem isto. Se há coisa que eu dispenso é usar um lavatório ao lado de um Narciso que esfrega a genitalia, enquanto contempla o seu próprio reflexo, com um olhar embevecido. Não aprecio. São gostos, que se há-de fazer...
- Treinadores amigos que me vêm explicar como devo fazer abdominais. São como os vendedores que te vêm perguntar se precisas de ajuda, quando só queres estar em sossego a ler contracapas de livros que não valem o preço marcado. Não me chateiem. Chateiem a miuda gorda, que ela ainda rebenta a bola de pilates.
Costumo dizer que a minha é uma geração privilegiada (não deixamos de ser a geração à rasca, estou a falar de uma coisa diferente).
Eu, e os outros como eu, que nasceram na década de '80, vimos o surgimento dos computadores. Somos a última geração que poderá lembrar-se de uma altura em que não havia computadores em casa!
Crescemos com computadores, aprendemos a linguagem dos computadores. E por linguagem não digo necessariamente programação, que é outro bicho completamente diferente. Digo saber mexer num computador, perceber se um problema vem da falta de RAM, ou de um programa mal instalado, só pela maneira como o computador se comporta. É como aprender línguas estrangeiras ou música. Ou se aprende desde uma idade precoce e fica realmente integrada, ou nunca será mais que colado com cuspo no córtex pré-frontal.
É por isso que os nossos pais (ou qualquer geração anterior à nossa) tem imensa dificuldade em lidar com computadores. Nunca aprenderam a linguagem de computadores, e tudo o que sabem foi decorado foneticamente, por assim dizer. Imensas, imensas vezes uma tia minha, ou o meu pai, ou a minha mãe, vêm pedir-me para lhes ensinar a apagar as mensagens do telemóvel 3310, ou abrir o e-mail, ou pôr imagens no Word. Eu também não sei como se faz! Mas ando por ali a mexer e chego a uma solução. Digo-lhes "é intuitivo!!!" mas só é intuitivo para mim, que aprendi a linguagem. Para eles é uma barreira intransponível.
Eu pensava que isto não ia mudar. Pensava que era privilegiado, e que nunca ia deixar de perceber intuitivamente de computadores.
Ah, the folly of youth...
Uma amiga minha arranjou um iPod Touch, e tinha aquilo cheio de aplicações, e queria livrar-se de algumas. Andei eu, com ela, a vermos as definições to iPod, a tentar descobrir como se apagavam as apps, mas sem nenhum tipo de sucesso. Finalmente desistimos, fomos ao google procurar como se fazia.
Sabem aqueles filmes do Guy Ritchie cheios de criminosos caricatos e gostáveis, com sotaques irlandeses cerrados interpretados por estrelas de hollywood a divertirem-se com o papel que matam pessoas a torto e a direito e fazem assaltos e tramam outros criminosos e no geral metem-se em sarilhos estapafúrdios e confusões intricadas cheias de eventos aparentemente desconexos até precisamente ao último momento em que todas as histórias se juntam e tudo faz sentido e depois vão todos beber uma caneca de cerveja felizes por terem sobrevivido mas sem terem ganho dinheiro apesar de tudo?
In Bruges não é um desses filmes.
Apesar de o trailer se esforçar muito por tentar convencer-vos que sim:
Quem vê este trailer é levado a pensar que vai ver uma mistura simpática e divertida entre o Snatch e o The Odd Couple.
Nada podia estar mais longe da verdade.
In Bruges é um filme compassado e calmo, muito intenso e pesado, sobre culpa, remorso e a futilidade da violência.
De facto tem os diálogos Tarantinescos dos gangsters a terem conversas banais enquanto matam pessoas, mas contrariamente aos filmes do Tarantino ou do Guy Ritchie, aqui o contraste entre a banalidade e a violência é desconcertante e perturbador ao invés de ser cómico. Realmente também tem vários pormenores aparentemente sem importância que ao longo do filme vão ganhando significado, mas isso serve só para mostrar como estas personagens estavam lixadas desde sempre, e não para fazer o guionista parecer esperto.
Contar mais acerca do filme seria estragá-lo, por isso deixo apenas a recomendação, e a nota final de que a banda sonora está extremamente bem conseguida.
Lembro-me de ver livros desta BD à venda na FNAC há muitos anos, provavelmente pouco depois de a série ter acabado (em 2000) e as colectâneas terem começado a chegar a portugal.
Na altura olhei para o desenho, e não gostei, por isso pus o livro de lado.
Entretanto fiquei melhor e depois de ter relido uma crítica do sempre grande M. no agora defunto Des1biga decidi ler a banda desenhada.
The Preacher é tudo o que M. prometia ser, e mais ainda.
"Esta é daquelas crónicas que sempre me apeteceu escrever. Depois de algum tempo a coleccionar BD chegou, finalmente, a hora de escrever sobre uma. The Preacher tem tudo aquilo que eu sempre odiei ler em BD: anjos, demónios, vampiros e até cowboys. Mas é perfeito. É tudo o que uma BD deve ser. Garth Ennis escreveu uma crítica fabulosa à religião e ao american way of life, cruzada com mil e uma referências à cultura pop, passando do James Bond aos western spaghettis. The Preacher é a história de Jesse Custer, um reverendo no Texas que um dia é possuído por uma criatura que fugiu do céu e que lhe dá o poder de Deus. Tudo o que Jesse ordenar é imediatamente feito pela vítima dos seus poderes. Mas o que a criatura divina vem anunciar a Jesse é muito mais importante e fundamental: Deus existe, de facto. Mas desistiu do lugar. E é com base numa premissa tão fantástica que a aventura se desenrola. Jesse entra numa jornada para procurar Deus, juntamente com a sua namorada e com um vampiro irlandês alcoólico como side - kick. Pelo meio junta-se uma organização religiosa poderosíssima - The Grail - que preserva fanaticamente o sangue de Jesus Cristo (ao ponto de ter feito com que os seus descendentes se cruzassem entre si, o que fez com que o descendente directo vivo de Jesus Cristo seja um atrasado mental que é visto pela organização como o próximo Messias) e que tem como braço armado um alemão com as parafilias mais incríveis. Há ainda Arse - Face, um adolescente que se quis suicidar como Kurt Cobain, mas que não foi eficaz. Há o Santo dos Assassinos, uma homenagem fabulosa a Clint Eastwood. E temos ainda o John Wayne himself, que aparece ao herói da série como guia espiritual. The Preacher é escrito por um irlandês e desenhado por um inglês e é uma visão cínica e peculiar dos States. Se Tintim é politicamente incorrecto porque Hergé não conseguiu reprimir o discurso idioto-colonialista da época (apesar de reconhecer que em termos de construção de narrativa e de gags humorísticos Tintim e seus pares foram pioneiros absolutos), The Preacher é politicamente incorrecto da maneira que as coisas inteligentes são. As críticas ao conservadorismo e à estupidez política estão lá todas. Sem pretensões ou subterfúgios. The Preacher não é uma BD intelectual mas é extraordinariamente inteligente. E apesar de todas as críticas, de todos os tiros, lutas, explosões, palavrões e reviravoltas da história, há uma ética subjacente. Aquela ética dos wertern spaghettis, de frases old fashion enquanto se acende um cigarro. É tudo o que uma BD deve ter: acção, humor, sexo, religião, política e drogas. É fantástico. Leiam. Como estava escrito na capa de um dos livros: "It will restore your faith. In comics.""
Há pouco que eu possa acrescentar ao que M. já disse na sua crítica original, excepto que para além das personagens fantásticas (anjos, demónios, vampiros e até cowboys), da sátira (homenagem?) à cultura americana, das críticas mordazes, e das sequências de acção invulgarmente bem conseguidas, The Preacher é no fundo uma BD sobre relações humanas, especificalmente relações de amor e amizade.
O trio de Jesse, Tulip e Cassidy que passa por várias encarnações de amor, amizade e ódio com tudo o que há pelo meio, é uma tese acerca de relações românticas e emocionais. Até o par Starr/Featherstone, por muito disfuncional e perturbador que seja, consegue ser um exemplo.
À medida que o tempo passa fico mais surpreendido com os adultos. Os seniores, if you will. Estou cansado de ouvir conversas de café sobre o quão mal isto está. Porque não haja dúvidas, o quão mal isto está já destronou há anos a meteorologia como tema mais debatido em ascensores, cafés, e à mesa do jantar. O quão mal isto está, ou o já viste onde isto chegou.
Isto realmente já chegou a um ponto que... estou farto desta treta. Parece moda andarem de um lado para o outro a lamuriarem-se sobre coisas. Porra. Calem-se. Isto está mal. Já sei. O governo não presta. Vem aí o FMI. A oposição é pior. Estão a cortar-nos o salário. Estão a cortar-nos os apoios. Os impostos estão a subir. O desemprego está a aumentar. Não há condições de trabalho. estão a destruir a saúde e a educação. As crianças estão mais estúpidas. O Benfica não está a jogar nada.
Esta é uma excelente época para lamúrias. Eu não tenho problema nenhum com lamurientos. Tenho problemas com frustrados lamurientos. É verdade que muitas coisas não estão brilhantes... Por exemplo, no barreiro, hospital distrital, não há hemoculturas para anaeróbios. Por exemplo. É uma coisa básica que falta. Mas isto não incomoda muita gente, excepto os desgraçados que tiverem sepsis por anaeróbios. E esses normalmente estão calados. E depois é só uma questão de uma pessoa ter sepsis pelo bicho certo. Também não é assim tão dificil... O que incomoda, e com toda a justiça, é a baixa de salários, a desvalorização das horas extraordinárias, é a carga de trabalho para lá do razoável, são os bancos de 24 h sem saída de banco, é a falta de comodidade no trabalho.
Isso é que mobiliza as pessoas para fazer reuniões para discutir maneiras de lutar contra a situação. Foi isso que aconteceu a semana passada, no meu local de trabalho. Fez-se a reunião, e decidiu-se que era melhor não fazer nada. Porque as horas extraordinárias podiam estar a ser mal pagas, mas as pessoas têm que pagar contas... e manter um determinado estilo de vida. Por isso é melhor não enfrentar administrações. Greves então, nem pensar. Fazem azia. Sindicatos, vade retro. Nunca na vida. Que nojo. Esses charlatões não querem é trabalhar.
Assim, ontem tive o prazer de ver as coisas voltarem ao que deviam ser. Fomos todos almoçar, e dizer mal do governo, da administração, dos MGF's, dos doentes e do vizinho do lado. Bandidos. Querem é roubar. Chupistas.
Fazer alguma coisa... epa, o que é que nós podemos fazer? Nada, claro. Nós somos alforrecas. As alforrecas não reclamam. As alforrecas ficam na areia a secar ao sol, até que vem um puto de 5 anos, obeso, espetá-las com canivetes que apanhou da areia. As alforrecas são bichos simpáticos que habitam em cada um de nós.
Lembro-me de duas frases: ''a democracia é o único sistema que garante que nenhum povo tenha um governo melhor do que merece'', e outra, dita por um espanhol radicado em Portugal, que trabalha comigo: ''Mijam-nos em cima, e temos que acreditar que chove.''
Existe este princípio ético que nos é inculcado durante todo o curso de medicina, que é o primum non nocere, que significa, basicamente "em primeiro lugar, não fazer mal". É o princípio da não-maleficiência, de acordo com o qual a primeira preocupação para um médico será nunca prejudicar o seu doente.
Se pensarem bem no assunto, há qualquer coisa de perturbador nesta ideia.
Estão a dizer aos alunos de medicina, com muita veemência e muito ênfase, "Não façam mal aos doentes!!! Sobretudo não lhes façam mal! Preocupem-se sempre se não lhes estão a fazer mais mal que bem!"
Não deviam estar a dizer aos alunos de medicina: "Melhorem a vida dos vossos doentes! Ponham-nos melhores ainda do que estavam antes de ficarem doentes!"?
Eu sei que isto pode parecer idealista, mas consegue ser melhor que o realismo deprimente que é "Ao menos tentem não matar os vossos doentes!".
É como se um oficina de mecânicos, em vez de publicitar que "Pomos o seu carro como novo!", anunciasse orgulhosamente, com um sorriso e um piscar de olho, que "Prometemos que tentamos não destruir o seu carro!"
Que um mecânico não nos põe o carro pior do que estava está subentendido. A expectativa básica é que ele o conserte, o ideal é que o deixe melhor do que estava.
Anunciar, à partida, que não nos vão destruir o carro, não me parece uma boa estratégia publicitária.
É como os cartazes publicitários da Câmara Municipal de Lisboa que eu tenho visto pelas ruas ultimamente, que anunciam orgulhosamente que já não há esgotos não-tratados a desaguar directamente para o rio Tejo.
Ora se eu estivesse na Câmara Municipal de Lisboa e tivesse conseguido finalmente fazer com que não houvesse esgotos não-tratados a desaguar para o Tejo, o que eu definitivamente não fazia era anunciá-lo como se isso fosse o melhor do mundo! Calava-me muito bem caladinho com esperança que ninguém notasse que só agora é que isso tinha sido conseguido, e se alguém me perguntasse, respondia que não, nunca tinha havido esgotos não-tratados para o Tejo.
Se sentem necessidade de enfatizar Primum Non Nocere, isso dá a entender que acontece tantas, mas tantas vezes, um médico fazer mais mal que bem a um doente, que de facto se justifica fazer do Primum Non Nocere um dos pricípios éticos da medicina, e não o "Deixem o doente ainda melhor do que estava".
Eu comecei a ler o On the Road sem saber bem o que esperar. Sabia que era um clássico da literatura americana do séc. XX, mas a verdade é que sabia pouco para além disso.
O livro segue as aventuras do seu narrador, Sal Paradise, enquanto este percorre a América de costa a costa várias vezes, na maioria das vezes acompanhado por Dean Moriarty, no fim dos anos '40.
Dean Moriarty é possivelmente a personagem mais irritante que eu já li até hoje. É irresponsável, inconsequente, impulsivo, incoerente, ininteligível a maior parte do tempo, um sacana cabrão que deixa os amigos apeados, inclusive o narrador, por várias vezes ao longo do livro.
E a história, se é que lhe posso chamar isso, progride bastante da mesma maneira: sem uma linha condutora, sem enredo ou tensão dramática. É só uma sequência aparentemente aleatória de desventuras que o narrador vai vivendo. Desde andar à boleia, andar em vagões de mercadorias, engatar miúdas, tomar muita droga, meter-se em complicações enormes sempre à custa de Dean Moriarty, apaixonar-se, passar o livro inteiro quase sem dinheiro, e sobretudo viajar pela América profunda, encontrando dezenas de pessoas e histórias pelo caminho.
O livro consegue ter algumas passagens muito interessantes quando descreve as trips de ácido pelas quais o narrador passa, que são ainda mais confusas que o resto do livro.
Mas o livro não tem história, não tem nada que nos faça querer passar à página seguinte. E é enorme, foi quase um sacrifício acabar o raio do livro.
No entanto, o que o livro faz, e muito bem, é caracterizar a geração beat que anos depois viria a dar origem ao movimento hippy. Vemos um conjunto de personagens que representam os beatnicks, que está a tentar descobrir-se, que está a encontrar uma identidade própria, e essa identidade é completamente diferente do resto da sociedade. As ideias de flexibilidade, hedonismo, paz com o mundo e muita muita droga estão presentes, bem como uma inocência que por vezes parece ingénua, mas que seria essencial à geração hippy.
Gostei do livro, mas definitivamente não o quero ler outra vez.
Passado aproximadamente um mês da viagem ao Japão, e continuo sem conseguir sumarizar a experiência. Estava à espera de ter um laivo de inspiração que me permitisse escrever um texto todo bonito e espirituoso, para me gabar de ter ido ao Japão. Isso não aconteceu.
Penso na viagem, e imediatamente vem-me à cabeça Tokyo, com 10 milhões de pessoas embaraçadas por terem de viver tão próximas umas das outras. Lembro-me de Shibuya, com os néons e os prédios com fachadas que passam vídeos e as meninas a gritarem "Sumimasen!" incessantemente. O mercado de peixe de Tsukiji, com mais peixe do que eu conseguia imaginar que existia, e de comer sushi às 8:30 da manhã num restaurante de rua. O parque de Hana Rinkyu, com os pinheiros manicurados e as paisagens planeadas. Fazer karaoke em Roppongi. Ir a um banho público em Asakusa.
Depois Nikko, que é do mais diferente de Tokyo que se pode imaginar, com pontes sagradas, o mausoléu do Tokugawa com um gato sobre-valorizado e embriagar-me com Sake
Kyoto, andar de bicicleta pelo bairro das geishas com casas centenárias, ser entrevistado por miúdos japoneses da primária, e um dos momentos mais perfeitos da minha vida quando estive no templo Shoren-In, com o sol a pôr-se.
Ir ao Monte Koya, e passear por um cemitério cheio de campas cobertas por musgo, até anoitecer. Miyajima, onde estive num hostel gerido exclusivamente por homossexuais, vi um Torii flutuante, subi a uma montanha e aprendi caligrafia.
Lembro-me de estar em Hiroshima, na fachada de um dos poucos edifícios a sobreviver à bomba, e de sentir um genuíno, literal, arrepio pelas costas abaixo.
Um vulcão activo, no Monte Aso, e comer bolos e ver anime noite dentro com um japonês bêbedo.
Conversar com um monge budista em Nagasaki, fazer festas a tubarões em Osaka, apanhar chuva e neve em Kanazawa, fazer snowboard em Hakuba.
Todos estes momentos aglomeram-se na minha cabeça, a acotovelarem-se, a tentarem vir à superfície. Mas são demasiados, são todos demasiado bons, demasiado deliciosos para ter na cabeça ao mesmo tempo. Surgem-me desorganizadamente e provavelmente nunca os vou conseguir digerir todos.
O que significa que o Japão vai ficar sempre à beira da minha consciência. Como quando nos lembramos de algo que sonhámos na noite anterior e tentamos lembrar-nos do sonho, apenas para ele se escapar por entre os dedos, e ficarmos apenas com imagens soltas e o eco emocional que deixou.
Este não é um texto bonito ou espirituoso. Mas eu tinha de escrever alguma coisa acerca do Japão e, sinceramente, acho que isto é o melhor que consigo fazer.
Hoje um dia começou outra vez. Segundo muitos um dia importante. O primeiro dia de trabalho. Por isso, levantei-me e pus-me a caminho para Torres Vedras. Somos um grupo de 24 de recem-graduados, que foram recebidos como heróis locais pelo pessoal hospitalar.
Depois de uma recepcção calorosa da direcção hospitalar, dei por mim a receber um cafesito distribuido pela Directora clínica e a comer bolinhos que ela lá tinha. Tirámos a bela da foto de grupo e levaram-nos a conhecer o hospital.
Às 15h estava a caminho de casa. Feliz e contente. Hoje durmo em frente ao mar, amanhã entro às 9h e … os meus bancos são só em dias uteis. ;)